Reflexões do Leopardo

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Os meus lixos

 Os meus lixos               Tudo o que eu disser de seguida sobre o ser humano que tentarei reflectir na sua essência profunda será sempre de mais e de menos (tal como o belíssimo desenho que pedi emprestado para o figurar).
De mais, porque irei lançar uma luz excessiva sobre um ser que vive e quer viver na penumbra, no contra-luz de um ocaso de inverno triste. De menos, porque qualquer ser - até as imponderáveis aranhas ou líquenes a desenvolver-se a metros e metros de profundidade do solo - têm a necessidade vital de um fiapo de luz para subsistir.

Perguntam-me se ele existe? Claro que existe. Pois se sonhei com ele! Como é sabido, os sonhos constroem-se a partir do real, e o real, mais lentamente, em certas condições que integram e ampliam o real, também a partir dos sonhos.

Mas podem encontrá-lo em muitas esquinas de Lisboa, esquinas de qualquer cidade ou vila portuguesa, num canto de feira. É relativamente fácil de reconhecê-lo: transmite o ar de quem acaba de poisar ou se prepara para partir com a sua traquitana. É, possui uma traquitana tão simplex quanto ele próprio e, por ser simplex, difícil de descrever. Uma coisa a modos semelhante a dois armários baixinhos com rodas, atrelados entre si, de uma cor cinza azulada a diluir-se na atmosfera ambiente.
Este nosso ser humano é um verdadeiro campeão da arte camaleónica do disfarce. Onde aparece, desaparece. 
E a traquitana? Um verdadeira caixa de Pândora! De gavetas espalmadas, que se abrem e fecham num ápice, espreitam óculos escuros de marca, telemóveis hi-tec, ipad's, ipod's, ai-sepodes, lenços de seda, écharpes, turbantes.

Ainda não me tinha acabado de perguntar como esta caverna de AliBáBá podia albergar esta miríade de maravalhas tão arrumadinhas como lenços de papel numa embalagem de plástico, quando me cintilou na íris um artefacto dos meus encantos. Não era um, eram vários, deitadinhos lado a lado, a luzir dourado e aço. Navalhas !
Pedi-lhe que reabrisse a gaveta dos meus encantamentos. Retorquiu-me naquela sua voz fugitiva, de surdina: "São os meus lixos. Também os prefiro". E, velozmente, exibiu-as a cintilar em luares de prata.
O escrivinhador que estas doudices tecla nunca usou Navalhas senão para cortar papel, abrir livros ou envelopes, mas se um dia houver de assaltar o palácio de inverno da Reacção portuguesa, será de navalha entalada nos dentes ! Porquê de navalha? Talvez pelo som magrebino do aço, talvez por ser a espada curta dos expoliados.
E a estória praticoconcretamente finda aqui, pois quando deveríamos iniciar os prolegómenos às negociações subsequentes, brotou do solo um fiscal, o meu evasivo vendedor evaporou-se e eu respondi ingénuo às mansas mansas falas do fiscal que nem tinha percebido bem quem o homem era, pois me parecera um tanto mais para lá do que para cá. E a coisa fechou-se sob o fungar suspeitoso do fiscal e o meu fungar acatarroado.
Lá dizia o Profeta que a Verdade tem mais faces que os olhos poliédricos de uma mosca.    

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