Reflexões do Leopardo

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quarta-feira, 2 de março de 2016

O Povo para quem eu escrevo

Caminha apressada, coxeando. Talvez classe média, fato de treino debaixo de um espesso casacão de boa lã aos losangos acinzentados. Pequena, grossa, perto dos setenta, o cabelo muito curto pintado de louro, dependurado de um braço um grande saco de plástico que atulhou num super-marcado da zona -  às Olaias.
Não é sítio onde se passeie às nove da noite. Muita ciganada, muitos capuzes a encobrirem faces onde fosforecem carbúnculos desafiadores.
Mas usa manquejar esta via, no sentido ascendente, o olho fito num alvo imaginado que se adivinha que seja a casa.
Terá marido à espera? Se tivesse devia tê-la acompanhado... Talvez não possa. Talvez esteja acamado ou preso a uma cadeira de rodas - e não será fácil mover uma cadeira de rodas neste empedrado irregular que é sempre a subir ou sempre a descer.
Irá ainda fazer o jantar? Ou terminá-lo? Terá optado por uma daquelas refeições já prontas que só precisam de ser aquecidas no micro-ondas?
Assegurar-se-á decerto que o marido tenha tomado todos os medicamentos necessários ao prolongamento da vida.
E depois? Verão ainda um programa televisivo até adormecerem?...
Sono interrompido por tosses nocturnas e idas inadiáveis à casa de banho. 
Discutirão uma vez mais a substituição das viagens à "casinha", no meio da noite, ensonados, por uma arrastadeira ou bacio no quarto. Porém, uma vez mais, o marido recusará determinado. Por fim adormecem.

Não será o filho da minha mãe a propor-lhes a atanásia ou eutanásia ou lá como diabo se denomina.
A vida é um milagre. Porventura o único. E o amor também. 



       FRIDAKHALO
     

                                                                                                                                                                 Amplexos milgrosos do 

Leopardo 

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