Reflexões do Leopardo

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domingo, 7 de fevereiro de 2016

"Dialogues des Carmélites", Fogos & Bombeiros


Alguns saberão que a Ópera - "Teatro per Musica" - derivou da música sacra - Oratória - cantada nas catedrais e igrejas e foi concebida como um espectáculo global que incluía todas as outras manifestações artísticas - o canto, a declamação cantada, o teatro, a dança, a música instrumental, os cenários, a estatuária, a pintura, e todas as artes conexas como a iluminação, os figurinos, as máscaras, a maquilhagem dos personagens. As representações mais faustosas iam ao ponto de pôr no palco cavalos verdadeiros e pequenas embarcações em cursos de água ou lagos.
Inicialmente, dependente dos grandes dignitários da Igreja e dos reis ou príncipes, dado o elevado custo dos meios necessários a congregar para representar "i drammi per musica", rapidamente se tornou um espectáculo popular, interpretado nas feiras apenas com um telão, um número escasso de cantores e meios musicais elementares (alaúde ou violino ou violoncelo ou harpa ou pandeiretas, adufes, castanholas) que incluíam, por exemplo, as primeiras caixas de música mecânicas. 
Claudio Monteverdi (séculos XVI, XVII) lançou os fundamentos do género com obras como "Orfeo" (1607) ou "Il ritorno di Ulisse in patria" (1640).

Ao contrário de muitos que consideram que a Ópera é um espectáculo elitista, dirigido às classes possidentes, eu julgo que a Ópera é um espectáculo e uma obra de arte eminentemente popular, desde que às classes exploradas sejam fornecidos os meios económicos e culturais necessários para dela poderem usufruir e enriquecer com a sua participação no mínimo reactiva (e nunca se fica só por aí). Lembro a este propósito o grande compositor e pedagogo Fernando Lopes-Graça que afirmava que não se trata de as obras de arte descerem ao nível cultural escasso dos alienados da fortuna e da arte (faria algum sentido pedir a Velázquez, Rembrandt, Goya, Pissarro, Rubens,Columbano, Picasso, Rogério Ribeiro, Francis Bacon que pintassem menos bem para se tornarem consumíveis?...), mas de desenvolver todo o trabalho social e pedagógico necessário para que essas classes a ela possam aceder (e, já que estamos com a mão na massa, o mesmo Lopes-Graça defendia com argumentação de peso que a língua portuguesa é tão "cantabile" como a inglesa, a alemã ou a russa).

Vem isto a respeito do Teatro  de São Carlos levar à cena por estes dias (hoje, dia 7.Fev.16.é o último) a ópera de Francis Poulenc (1899-1963) "Dialogue des Carmélites". O evento histórico  no qual se baseou conta-se em três penadas: no dia 17 de Julho de 1794, no período subsequente à grande Revolução Francesa iniciada em 1789, sendo em 1974  o poder liderado por Robespierre e pelo jovem general Napoleão (este último a vertente imperial e burguesa da revolução popular), 16 freiras carmelitas são condenadas por crimes contra o Povo Francês  e guilhotinadas na Place de la Révolution, em Paris.
Vamos primeiro ao que é óptimo: a produção do São Carlos prova abundantemente que existem em Portugal artistas portugueses - maestros, cantores, actores, Orquestra, encenadores, Coro, director do Coro, cenógrafos, figurinistas, desenhadores de luzes - capazes para justificarem uma companhia de ópera residente portuguesa pela qual tanto lutou João de Freitas Branco (1922-1989; formado no Conservatório de Música em Lisboa, e licenciado em Matemática), considerado por muitos um dos grandes divulgadores e pedagogos do gosto musical.
É um pouco injusto mas também difícil fugir a destacar nomes como o do maestro João Paulo Santos (ou Joana Carneiro), o do encenador Luís Miguel Cintra, ou cantores/as como Luís Rodrigues, Dora Rodrigues, Mário João Alves, Ana Ester Neves, Ana Paula Russo, Carlos Guilherme, Helena Vieira, ou o de Giovanni Andreoli, maestro titular do Coro, italiano, que afirma considerar o São Carlos a sua segunda casa (Andreoli merecia sem discussão a dupla nacionalidade). Que me perdoe o resto da companhia de ópera este surto de subjectividade, porém seria estulto da minha parte querer substituir-me ao programa (que, aliás,felizmente, é barato).

O "Dialogue des Carmélites" é uma obra interessantíssima com  um "libretto"que desenvolve dialecticamente os avanços e recuos do medo e da coragem dentro das personagens, cujo enredo pode ser imaginado em situações históricas muito diversas, e mesmo contrárias, com páginas de música e árias ao jeito de grandes intérpretes.

Todavia, uma obra de arte não deve ser submersa nas visões parcelares ( que são sempre lícitas e enriquecem a visão global) dos elementos que a compõem, e o "Dialogue", depois de reconfigurado por vários compositores, na sua leitura mais imediata e óbvia é a glorificação da reacção à grande Revolução Francesa. Não por acaso, as 16 freiras guilhotinadas, foram beatificadas há poucos anos por um Papa. Adivinham por quem?... Exactamente, por João Paulo II, um dos pontas de lança contra o País dos Sovietes... 
Esta obra de arte é proposta, nestes termos, num momento histórico em que a maior super-potência a nível planetário, os EUA, alimentando sonhos imperiais, arrisca abrir uma terceira guerra mundial com mísseis nucleares instalados em satélites espaciais, uma verdadeira "guerra das estrelas".
Este contexto histórico actual, a leitura mais elementar do drama lírico interligada a uma certa monodia, deixam algures asfixiados (em minha "umile" opinião) a intervenção histórica individual e o espaço para a felicidade, móbil de todos os seres humanos - como o escreveu Álvaro Cunhal no "Relatório ao VI Congresso" e no "Partido com Paredes de Vidro".

Com estas reservas, o "Dialogue des Carmélites" é uma obra a ver em absoluto... e a repensar, até porque, como escreveu Lopes-Graça, "a cultura não é uma flor que se use na lapela". 

Caindo e decaindo, a contra-gosto, nas últimas declarações bombásticas de Pedro Passos Coelho, declamou a criatura que não quer ser o "bombeiro" do país, porém, pelos sinais de governação do Governo em exercício, prevê, mais cedo que tarde, que será requisitado de novo a primeiro-ministro para apagar os fogos que a governação actual  está a atear. E só preferia não ser chamado quando a casa não estiver já em chamas.

Como não se trata de uma carnavalada da parte do Passaralhos, apesar do semblante de imensa alegria e regozijo interior, temos de as levar a sério e ponderar perplexamente que são pelo menos afirmações curiosas, vindas de um ex-primeiro-ministro durante cuja (des-)governação o País esteve literalmente em chamas com hectares e hectares de florestas queimadas, sistematicamente ano após ano, vidas humanas perdidas, habitações e rebanhos destruídos.
País em chamas igualmente do ponto de vista económico e social - regressão da economia, aumento da dívida externa para 130 % do PIB, aumento do desemprego ( de curta e longa duração), aumento da miséria social, crescimento da emigração, nomeadamente entre a juventude mais qualificada, liquidação do SNS com o fecho de inúmeros centros de saúde e hospitais, liquidação do sistema educativo público com mais de 2000 escolas encerradas e   transferência de verbas para o ensino privado, desertificação do interior rural com o desaparecimento de duas centenas de aldeias, redução das comarcas judiciais com os prejuízos inerentes para os cidadãos e empresas de menores recursos. "And so on, and so on".

Perguntamos ao de novo candidato a primeiro-ministro, porque escolheu a figura metafórica do "bombeiro"? Os bombeiros, quer os voluntários quer os sapadores, são cidadãos queridos, estimados pela população, e alguns deles (muitos mais do que seria previsível e desejável) têm sucumbido no combate aos tais fogos florestais. Porque pretende esconder a sua figura mascarrada e derrotada de ex-governante atrás da figura abnegada e honrada do Bombeiro?... Que mal lhe fizeram os Bombeiros?... Oh homem, há um limite para a paciência, mesmo de criaturas com uma desvergonha e um descoco como o seu. Os espelhos em sua(s) casa(s) estão todos tapados com véus??...  

Desta vez sem amplexos

O Leopardo     
  

2 comentários:

  1. Realmente todas as revoluções têm danos colaterais, morrem inocentes!
    Não podemos esquecer o período do terror da Revolução Francesa!
    Também não podemos esquecer os crimes da Inquisição!O Papa já pediu desculpa? ou canonizou alguma dessas vítimas inocentes?
    Abraço amigo Eduardo

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