Reflexões do Leopardo

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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Aos Poetas

Resultado de imagem para fotos ou imagens deMário de Sá-Carneiro    Na meu blog de ontem cometi um crime de lesa-majestade. Digo bem, de lesa-majestade: citei incorrectamente um dos poetas maiores da língua portuguesa. MÁRIO de SÁ-CARNEIRO.

Não, não tem nada a ver com um político menor do século XX  que as miáufas  e o desespero da família politica da direita portuguesa e um acidente de avioneta, cujas causas nunca foram esclarecidas (nem serão, profetizo eu, pois o sebastianismo reaccionário exige-o), alcandoraram a génio estratégico.

Pois, para tentar reparar o meu leviano crime para com um dos príncipes das letras lusas, vou hoje citar na íntegra, e correctamente, o poema em causa. 

                                       Quando eu morrer batam em latas, 
                                       Rompam aos saltos e aos pinotes,
                                       Façam estalar no ar chicotes,
                                       Chamem palhaços e acrobatas !

                                      Que o meu caixão vá sobre um burro
                                      Ajaezado à andaluza
                                      A um morto nada se recusa,
                                      Eu quero por força ir de burro.

Mário de Sá-Carneiro, escreveu-o em Paris, em 1916, intitulou-o de "FIM" e é este poema e uma carta (de 13 de Março.1916) que enviou a Fernando Pessoa - o seu maior amigo -  em que lhe explica o que vai fazer, que lhe atrasaram o suicídio com 5 frascos de arseniato de estricnina, no Hotel Nice, em Montmartre. Tinha vivido 25 anos de inadaptação à vida e à sociedade que conhecia, talvez antecipando aquele final que lhe parecia o único digno dele.

Fernando Pessoa comentará anos depois a pessoa e o acontecido grafando: "Nada nasce de grande que não nasça maldito..." ( F.Pessoa, "Athena nº2", Lisboa, Nov.1924).       
Amália Rodrigues ao ler o poema em causa bastantes anos mais tarde não terá conciliado o sono durante dias e terá pensado cantá-lo. Adiante se verá que não foi a única cantora a apaixonar-se por Sá-Carneiro...

Escrevem os entendidos que a metrificação de Sá-Carneiro não se afasta da metrificação tradicional ( redondilhas, decassílabos, alexandrinos ), mas a sua escrita adquire um cunho singular pelos ataques à Gramática e pelos jogos de palavras que acentuam a exaltação do sentir. O seu pendor niilista acentua-se e desvela uma humanidade autêntica, triste e trágica.   

Rezam as biografias que Mário de Sá-Carneiro provinha de uma abastada família da alta-burguesia, filho e neto de militares, ficando órfão  de mãe aos 2 anos (1892) e indo viver com os avós para a Quinta da Vitória (ainda conserva o nome), na freguesia de Camarate (que ficava, como se sabe, completamente fora das portas de Lisboa; na época, Lisboa acabava por alturas do Marquês de Pombal, onde começavam já as hortas).
Mas o adolescente a crescer na Quinta da Vitória aos 12 anos escreve poesia, aos 15 traduz Victor Hugo, aos 16 traduz Goethe e Schiller.
As biografias rezam ainda que matriculado em Direito, primeiro em Coimbra (1911) e depois na Sorbonne/Paris (1912) não conclui os anos, não frequenta sequer as aulas. Em Paris entrega-se a uma vida boémia, deambula por cafés, salas de espectáculo, passa fome (apesar da mesada generosa da família), desespera-se (será a faceta constante do seu carácter), liga-se emocionalmente a uma prostituta.


                                         As mesas do Café endoideceram feitas ar...
                             Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai êle a valsar
                             Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...


                          ( Subo por mim acima como por uma escada de corda,
                            e a minha Ansia é um trapézio escangalhado...)


1912 foi igualmente o ano em que conheceu Fernando Pessoa. E  foi entre 1912 e 1916 que compôs grande parte da sua obra: "Amizade", de 1912, peça teatral que compõe de colaboração com Tomás Cabreira Júnior ; "Princípio", novelas de 1912; "A Confissão de Lúcio", romance em torno do "fantástico", de 1914; "Dispersão", 12 poemas de 1914; "Céu em Fogo", novelas de 1915 que revelam as suas perturbações e obsessões.

Postumamente foram publicados : "Indícios de Oiro", uma colectânea dos seus trabalhos mais significativos publicada em 1937; e "Correspondência", que reúne a correspondência trocada com Fernando Pessoa, Luís de Montalvor, Cândia Ramos, Alfredo Guisado e José Pacheco.

Entre 1913 e 1914 vem a Lisboa com regularidade e juntamente com Pessoa e Almada Negreiros integrou o primeiro grupo modernista português, sendo Sá-Carneiro o responsável pela edição da revista literária "Orpheu". Pretendiam escandalizar a sociedade burguesa e urbana e conseguiram-no: foram alvo da chacota social.

O que vou escrever a partir daqui será decerto muito menos consensual. É a minha opinião pessoal. Não pretendo estabelecer nenhum "ranking" literário ( o que está tão na moda e é mais uma estultícia tipicamente ianque dos tempos que correm ), pretendo tão somente abrir um espaço de debate... e de reflexão.

Confesso que prefiro Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Não estou de modo nenhum a negar a genialidade de Pessoa, escritor ímpar em qualquer literatura. Nem pretendo abrir uma galeria de escritores superlativos num País reconhecidamente de Poetas. É claro que enfileiro Pessoa ao lado de Camões, de Fernão Lopes, das nossas "cantigas de amigo", dos autos de Gil Vicente, da "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, do Camilo, do Eça, da poetisa Florbela Espanca, da romancista Irene Lisboa, do Aquilino Ribeiro, do neorealista Alves Redol, do Miguel Torga, de alguns poemas de José Régio, do Carlos de Oliveira, da acutilante ironia de Alexandre O'Neill, do poliédrico Ary dos Santos, do Álvaro Cunhal de "Até Amanhã Camaradas", de "Cinco Dias, Cinco Noites" (sob o pseudónimo Manuel Tiago ) ou do Cunhal de "A Arte, o Artista e a Sociedade", do "poeta de poetas" Manuel Gusmão, ou, mais contemporaneamente, de Domingos Lobo poeta, autor de teatro, romancista. E peço desculpa aos muitos que podiam aqui emparceirar, porém não me pingam agora na cachimónia.

Como ia dizendo cá na minha, prefiro Sá-Carneiro a Fernando Pessoa (e, insisto, não estou a medi-los com nenhuma fita métrica). E prefiro-o porque aquela ânsia infinita de infinito, de perfeição, entretecida com o sentimento pungente do valor de coisa nenhuma, me atinge cá dentro. 
Aquela dor não era "fingida" como em Pessoa, não era uma quádrupla, quíntupla, seistupla (porventura, enésima ) personalidades ficcionadas, construídas de uma ponta à outra, que falam mesmo de formas diferentes, conscientes de que são desdobramentos da personalidade (os famosos heterónimos) para experiênciar literariamente "o mundo" (que, na verdade dos factos, pouco deve ter ido para além do rotineiro percurso entre o Largo do São Carlos, a "Brasileira" do Chiado e o "Martinho da Arcada" ao Terreiro do Paço, onde Pessoa engorgitava as suas aguardentes).

                                     Não sou nada,
                                     Nunca serei nada.           
                                     Não posso querer ser nada.  
                                     À parte isso, tenho em mim todos os meus sonhos do mundo.

Extracto do poema "Tabacaria" de Pessoa (de 15. Jan.1928). O niilismo é semelhante ao de Sá-Carneiro, mas este niilismo possui alguma coisa: a certeza dos seus sonhos.
Ou, ainda, outro extracto da "Tabacaria":

                       (Come chocolates, pequena;
                       Come chocolates !
                       Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.)

Portanto, em Pessoa, a certeza dos sonhos e a certeza de sensações que pensam ou vice-versa.
Em Sá-Carneiro, as únicas certezas são as da "dor", de uma "ânsia infinda" e sem subterfúgios, de uma perdição irremediável.

                         Perdi-me dentro de mim
                         Porque eu era labirinto

                         Na ânsia de ultrapassar,
                         Nem dei pela minha vida...

                        Para mim é sempre ontem,
                        Não tenho amanhã nem hoje

                       Um pouco mais de sol - eu era brasa, 
                       Um pouco mais de azul - eu era além.
                       Para atingir, faltou-me um golpe d' asa ...
                       Se ao menos eu permanecesse àquem...

Extractos intercalados dos poemas "Dispersão". Ou a excruciante quadra de "Indícios de Oiro" (pela qual infelizmente se apaixonou Adriana Calcanhoto - cantautora de resto excelente e que aprecio, mas que neste particular não mediu o suficiente o problema de glosar um enorme Poeta):

                     Eu não sou eu nem sou o outro
                     Sou qualquer coisa de intermédio:
                     Pilar da ponte do tédio
                     Que vai de mim para o Outro  


Tentarei sintetizar o que julgo sobre os dois enormes poetas ( sem a pretensão, volto a insistir, de estabelecer um "ranking" ) com duas imagens metafóricas: o chapéu de Sá-Carneiro escondia um vulcão que o consumiu... e que nos consome mais ou menos conforme com ele empatizamos; debaixo do chapéu e por trás das lentes dos óculos de Pessoa fosforesciam uns olhos de serpente-capelo sem veneno, ilusionismos de um maestro dos mágicos.


                            Resultado de imagem para fotos ou imagens de Fernando Pessoa     Resultado de imagem para fotos ou imagens deMário de Sá-Carneiro


Óspois destes arrincansos em que dei o melhor de mim mesmo - eu sei que não é grande coisa ! - preciso pelo menos de dois dias ou três para me preparar e recuperar do ciclópico embate entre o FCP e o SLB. Se sobreviver, cá nos reencontraremos...

Amplexos amistosos (de garras cada vez mais recolhidas) do Vosso

Leopardo 

     



    

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