Reflexões do Leopardo

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quinta-feira, 1 de junho de 2017

Mário Castrim, Estrela Polar de uma Humanidade Nova

É, transantontem estive no Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz (Rua António Maria Cardoso,54), um magnífico espaço, para participar no Espectáculo de Homenagem a Mário Castrim.
Não faço ideia porque bulas a Câmara Municipal de Lisboa me distinguiu com tal honra - a mim e a mais umas 200 pessoas - eu, insignificante grão de areia nas praias escolhosas dos espectáculos lusos, quando tantos, por muito maiores trabalhos, lá não vi.

Muitos acontecimentos pessoais me ligam ao Cine-Teatro São Luiz e à Rua António Maria Cardoso (uns números de porta mais abaixo). No São Luiz principiei a ver cinema pouco depois de bébé (ia de chucha para o caso de adormecer) e foi lá que me entraram pelos olhos imberbes todos os Patos Donaldes, Ratos Mickeys e Plutos que havia para ver.
Na António Maria Cardoso, sede da PIDE/DGS  , comecei a ser interrogado porque raio tinha eu sido detido e identificado na Capela do Rato com um bando de sediciosos, disfarçados de católicos, a contestar o bom Senhor Doutor Presidente do Conselho, Dr. António de Oliveira Salazar (no destino nacional tem existido sempre uma oliveira atravessada...) , eu, um jovem de aparência tão cordata, de "blazer" azul, botões dourados, gravata de seda. Na sala onde fui ouvido, em atmosfera benévola (que diabo! eu não era um operário!...), recordo um mapa de Portugal continental, em baixo relevo de madeira, onde a zona do Alentejo era colorida a vermelho (espero que o emblemático mapa ainda exista e não tenha sido extraviado por mãozinha de reaça...). Este primeiro interrogatório haveria de ser prosseguido em atmosfera menos blandiciosa dentro dos muros da prisão de Caxias , pela minha banda sempre de "blazer" azul, gravata de seda natural, ar inocente de qualquer culpa excepto a ingenuidade juvenil.

Como ia teclando, ontem fui ao São Luiz para participar na cerimónia de homenagem ao arquétipo crítico de Televisão que foi Mário Castrim. Na verdade, ele foi o primeiríssimo crítico de televisão que existiu em Portugal. A 7 de Março de 1957, quando a TV apareceu no rectângulo nacional a emitir regularmente existia apenas um canal, a preto, cinzentos e branco, com emissões a partir das 21,30 horas, canal que era controlado pela censura do ditador Salazar .

Castrim era jornalista no diário "A República", periódico no qual tinha a coragem de escrever todos os dias críticas aceradas às transmissões televisivas - transmissões que eram obviamente uma voz ideológica do fascismo colonialialista no poder, coragem tanto maior quanto era corrente que Castrim era comunista ( de facto, o jornalista Castrim foi sempre militante, até ao último dia da sua vida, do PCP ) e alimentava uma folha no "República" dedicada à formação dos jovens com apetência para a escrita, folha onde foram crescendo literariamente talentos como, por exemplo, José Barata Moura, António Lobo Antunes,  o actual ministro da Cultura,  Castro Mendesetc, etc.

O lápis azul da censura fascista , que tesourou com frequência os artigos do jornalista Castrim, tentou mesmo cancelá-los para sempre, porém a reacção popular foi tanta e tal, que após umas semanas foi obrigado a repô-los para manter as aparências de uma ditadura branda, que ia sendo tolerada com "uns safanões dados a tempo". Na realidade, enquanto Castrim ia sendo mimoseado com os "piropos" de "sectário-geral", de que escrevia num calão reles e plebeu, chegou no práticó-concretamente a receber cobardes ameaças de morte.

Aliás, eu, Leopardo sobrevivente de outras eras glaciares, nos idos de 60, inícios de 70, numa disciplina de Linguística, leccionada por Lindley Cintra e Ivo Castro , elaborei um pequeno ensaio no qual provei que Mário Castrim, nas suas crónicas afiadas sobre a RTP usava em 95 % dos textos um português erudito, decerto devedor de Eça e Camilo, sendo os 5 % sobrantes preenchidos por variantes de ditados populares, neologismos e parentes irónicos de um calão elegante.

Não descobri a pólvora, tudo isto nos foi sendo dito por testemunhos diferentes ao longo do Espectáculo de Homenagem a Castrim. Muitas gentes existiam que compravam exclusivamente "A República" para lerem as suas críticas e até pediam aos jornaleiros "venda-me o Castrim!".

Uma das intervenções que mais me surpreendeu foi a do apresentador de TV Manuel Luís Goucha (ser humano com o qual nunca consegui embirrar talvez por me parecer genuíno e com facetas simpáticas), o qual - situando-se num quadrante político mui diverso do de Castrim - afiançou num discurso, apoiado em notas que ia confundindo e deixando cair, que os ensinamentos que guardara do mestre constituíam uma verdadeira cartilha, que o "Mário continua a viver em mim e só morrerá quando o meu coração e a minha memória se apagarem" !... ( confesso "che se non è vero, è ben trovato" ). Nestas confissões apaixonadas, Goucha foi contando que o mestre lhe ensinara que não estivesse focado nos "horários nobres" da noite, que todos os horários eram nobres, mesmo os da manhã ou do princípio da tarde, desde que estivesse preparado para eles e tentasse verdadeiramente servir o Povão.
Goucha desabafou que não deixara no imediato de lutar pelos "horários nobres da noite", mas os ensinamentos do Mário foram-no embebendo.
Tiro-lhe o meu chapéu Goucha pela sua sinceridade e apenas lamento que tenha escolhido um vestuário mais discreto para a homenagem a Castrim  do que o vestuário com o qual costuma enfarpelar-se nas suas apresentações televisivas. Porventura, talvez o mestre lhe tivesse aconselhado a usar o mais espampanante. Parece mais genuíno...

Mário Zambujal contou-nos que trabalhara na Redacção do "República", onde , insolitamente,  existia apenas um telefone, dependurado do tecto por uma gambiarra, que ia sendo passado de umas secretárias para as outras através de um dédalo de espaços apertados. Em dado momento calhara-lhe a ele Zambujal guiar o telefone dependurado para a secretária do chefe da Redacção, Mário Castrim, o que fizera acompanhado da expressão "para o sr. dr. Mário Castrim". Castrim interrompera-o de imediato, olhos nos olhos, para emendar : "eu, Mário, tu, Mário. Chega e sobra. Zambujal, concluiu interiormente: "temos gente!" .

Os depoimentos foram-se sucedendo. O apresentador do Espectáculo de Homenagem, Miguel Leite, sempre a puxar a brasa para a sardinha do PS, fértil naqueles "distinguos" oratórios que deliciam as almas ps , confiou-nos que teria preferido "Espectáculo de Celebração", todavia democracia "oblige"... E escorregou numa daquelas cascas de banana que o subconsciente nos atira ao asseverar, num anti-comunismo primário, que "era obrigado a reconhecer que até o PCP se comprometera a ajudar a editar um CD e um livro que prolongasse no tempo a Homenagem-Celebração", ou quando se referiu ao secretário-geral do PCP, apodando-o de "secretário de Estado". Caro Leite deveria saber que a verdade da Vida acaba sempre por levar de vencida a virtualidade das habilidades oratórias...

De qualquer forma, o que foi impressionante e que se foi somando nos testemunhos bastante diversos, foi a qualidade das relações profundamente humanas, de respeito e afecto que Mário  Castrim estabelecia com todos com quem lidava, mesmo com aqueles dos quais discordava politica e ideologicamente. Confirmaram-no Correia da Fonseca, geralmente considerado o herdeiro de Castrim na docência televisiva,  na ironia e elegância da escrita, herdeiro que frisou os cuidados na preparação técnica, científica e humana de que Castrim rodeava o seu trabalho. Repisou-o Helena Sacadura Cabral, mãe dos manos Portas, senhora de um discurso incoerente, que transitou pelo Banco de Portugal e hoje acampa nos arraiais da televisão balsemónica.

Confirmou-o com naturalidade o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, o qual, num discurso bem elaborado, conciso, acentuou sobretudo as vertentes culturais, humanas e de seriedade docente que Castrim empenhava na sua militância ao serviço do Povo Português.

Surpreendentemente, confirmou-o o representante do Sporting Lisboa Benfica, o qual num discurso apaixonado revelou a paixão de Castrim pelo SLB, o clube do Povo, clube que no seu hino inicial prenunciava a canção "Avante!" do PCP, hino inicial do SLB que foi proibido pela censura salazarista , como igualmente era interdito usar a expressão "os vermelhos" para os jogadores do Benfica, que deveriam ser designados pelos "encarnados"... 
Castrim costumava afirmar que "quando o SLB ganhava ou perdia, o grande Povão português, a arraia miúda, ganhava ou perdia com ele, semanalmente, um pouco da sua parca felicidade". Castrim que usava com orgulho uma t-shirt vermelha oferecida pelo seu clube. Clube que enviou à Homenagem dois dos seus jogadores "craques".
O SLB pecou pelo representante que enviou à Homenagem. O seu testemunho foi tão veemente, tão sem um certo distanciamento ou humor, que assumiu um carácter impositivo, o qual nem sequer foi esbatido pela bela declaração final de que a alegria benfiquista abraçava o respeito pelos adversários, pois sem eles não haveria jogo nem desporto.
Uns queridos camaradas meus afirmavam no final da Homenagem que o discurso benfiquista fora o único discurso político. Tola apreciação. Políticas foram-no todas as intervenções, umas assumidas, outras encapotadas.

Quanto a discursos de artesanato, um dos seus expoentes foi  sem dúvida o de Sua Excelência Excelentíssima, o Profe Martelo. Sem teleponto ou cábulas nos arredores, Sua Excelência debitou um "improviso" onde falou na qualidade de "cidadão" e na qualidade de "Presidente". Como "cidadão" "ele é, claro, um pró-Castrim ( e,não me recordo, se um pró-SLB... ) , como Presidente, ele é de Todos, e por isso também dos anti-Castrim".
Fiquei assim inteirado que Sua Excelência vai ultrapassar largamente em heterónimos o Fernando Pessoa. Cá pelas minhas contas já lá vão 7 : ele é o afilhado de Marcelo Caetano, ele é comentador político do PSD, ele é o comentador futebolístico, ele é o leitor de 44 livros por semana com notas de classificação e resenhas críticas de alguns, ele é o elemento integrador e pivôt do PÁF, ele é o retorno ao PSD "alone", ele é o candidato e presidente eleito de todos os portugueses, a todos abraçando na mesma meiguice ( ou melguice ).
Mais veremos o que nos revela o futuro deste patológico caso de personalidade dividida ou esfrangalhada... 

Que posso ainda dizer do carregado elenco de notáveis presentes na Homenagem?
O encenador João Lourenço conheceu Castrim numa fase da vida Joanina em que integrava o "Grupo 4"- fase na qual Castrim também usava o nome de baptismo Manuel Nunes da Fonseca - e agora Lourenço, na posse do Teatro Aberto à Praça de Espanha, em Lisboa, promete montar uma peça-surpresa sobre a personalidade tutelar de Mário Castrim.

Vítor de Sousa - que tem andado em digressão com Luísa Amaro - interpretou, exemplar e conciso , poemas de Castrim .
A esbelta Nádia Sousa cantou esplendorosamente três canções de Edith Piáf - outra das paixões do Castrim - apesar do maestro Vitorino d'Almeida ter matraqueado o piano de cauda furiosamente de molde a tentar impedir a audição da Nádia.
Maestro que nos obsequiou também com uma daquelas suas teorias populistas de feira da ladra, segundo as quais não existem diferenças de categorias musicais, apenas existe boa música e má música. E, talvez, acrescentou num arrincanso incongruente mas com graça, música péssima.
Em minha opinião a única contribuição do maestro da bengala, das cangalhas, dos cabelos às farripas e dos gestos envolventes à vampiro à altura do Mário foi uma "berceuse" sussurrante que lhe dedicou no final, que era de facto bela ( aposto que bela também porque foi curta, senão o maestro havia de cansar-se, entrar em guerra com o piano e os nossos tímpanos!... Não perco a esperança de o ver por uma vez a partir o piano à porrada, zangado consigo e com o Universo... Como eu o compreendo maestro !, a mim também me dão ganas de partir as parker's , as montblanc's, o computador quando os escrevinhanços não me vão de feição... ).

Igualmente saiu por cima um fabuloso acompanhamento e solo, numa guitarra portuguesa!, do jovem Luis Guerreiro. Saiu numa apoteose de palmas, após o fadista João Braga ter confessado (foi uma noite de sacristia!) que "respirava fundo em semana em que o Castrim não o tivesse referido, pois, se o referia, era para lhe malhar" . Porém, JB , estava lá a cantar fados na Homenagem a Castrim... 

Presente outrossim, o General Pezarat Correia , que não foi convidado a falar, o que é lamentável. 

Enquanto Nós nestes inteirins, o Trampas, isto é, a Administração "cowboy", não assinou o Acordo sobre a Redução da Poluição Atmosférica e tem agora na mira do seu arsenal "merdiático" e nuclear o Afeganistão e a Venezuela de Maduro ( onde instrói, arma e investe dólares na classe capitalista venezuelana ), para além, claríssimo, da República Popular da China e da Rússia de Putín. Enfim, o trivial trampista...

Findemos, pois, esta edição do blogue com o belíssimo poema de Mário Castrim escrito 8 dias antes de morrer (sofria de uma tuberculose óssea detectada aos 9 anos de idade) :

                             Lágrimas, não. Lágrimas, não. A sério.
                             Enfim, não digo que. É natural.
                             Mas pronto. Adeus, prazer em conhecer-vos.
                             Filhos, sejamos práticos, sadios.

                            Nada de flores. Rigorosamente.
                            Nem as velas, está bem? Se as acenderem,
                            sou homem para me levantar e vir
                            soprá-las, e cantar os "Parabéns".

                            Não falem baixo: é tarde para segredos.
                            Conversem, mas de modo que eu também
                            oiça, e melhor a grande noite passe.

                           Peço pouco na hora desprendida:
                           Fique eu em vós apenas como se
                           tudo não fosse mais que um sonho bom.  


  
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Creio que tudo o que valia a pena ser dito o foi.

Sonhos confiantes

Leopardo

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