Reflexões do Leopardo

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domingo, 19 de março de 2017

Mal de Pierres

Ontem fui ao cinema. É, deixam entrar leopardos desde que convenientemente déguisées de seres humanos. Pois, por exemplo, também lá estava o chefe Costa disfarçado de um vulgar gentio, acompanhado da consorte. Até sorria para quem lhe sorrisse e não levava seguranças que se distinguissem à vista desarmada - aqueles tipos com aspecto de armários frigoríficos de restaurante - , aspecto simpático que quase me tentou a ir cumprimentá-lo, embora o chefe não seja santo da minha devoção ( o pai Orlando Costa , poeta fadado e vertical, que lhe perdoe, dado que nenhum pai merece um filho assim tão astuto e troca-tintas). Pouco depois, arrependi-me de não ter ido salamalequear o chefe Costa e telegrafar-lhe um recado de endexas bolcheviques, quando, ao lado da minha cadeira cinéfila, ouvi um "tio" rosnar: "vem uma pessoa pr'áqui, e leva logo com a Geringonça". Roufenhei qualquer coisa sobre "antes Geringonça que carroça de mulas tísicas" e obriguei o envernizado "tio" a ver a película de "asas" encolhidas, dado que eu sou um leopardo das eras glaciares anteriores.


Aviso de imediato que, sendo tomorrow dia do Pai, e tendo esta blogue a injustificada auréola de ser dirigido a intelectuais de cepa, não traduzirei nenhuma expressão estrangeirada ou neologismo. Os intelectuais que puxem pelo cachimónia.

Como ia dizendo - e me interrompi a mim próprio, pois eu gosto é dos intervalos, dos recreios, para descansar das prelecções - ontem fui ao cinema ver um filme que porta em françiú o sugestivo título de "Mal de Pierres", cujo frontispício, em hora de má sorte, foi traduzido para "Um Instante de Amor" (terá sido coisa do José Rodrigues dos Santos, "o Orelhas", ou do espertalhuço do Zé Medalhas?...).
Reza a sinopse da obra que "Gabrielle, a heroína,  foi criada numa pequena aldeia do sul de França no seio da pequena burguesia agrícola, onde o seu sonho de uma paixão absoluta causa escândalo. Numa época em que o casamento é inevitável para qualquer mulher, a sua resiliência é mesmo considerada loucura. Os seus pais decidem então casá-la com José, um trabalhador sazonal (espanhol, evadido da sua terra por ter participado do lado republicano contra os franquistas) encarregando-o de a tornar uma mulher respeitável (em troca de o financiarem para se lançar no negócio de mestre de obras). Apesar da devoção de José, Gabrielle insiste que nunca o amará e continua a viver confinada aos limites da sociedade convencional do pós-II Guerra Mundial. Até ao dia em que vai para os Alpes para começar um tratamento de pedras nos rins. É lá que conhece um jovem tenente, filho de um general, que foi ferido durante a guerra da Indochina, o qual lhe desperta a paixão até então recalcada. Ela promete que fugirão juntos e o jovem oficial - permanentemente sob o efeito de morfina e de ópio para lhe aliviar as dores - parece partilhar este desejo. Ela fará tudo para levar o sonho até um fim."

Considero esta sinopse pobre e enviesada, pois película é bem mais do que isto. Toda a história é atravessada por lutas e consciências de classe subterrâneas, onde está representada a alta burguesia (o jovem oficial moribundo, filho de um general), a média burguesia rural (os pais da heroína Gabrielle), o proletariado (José, espanhol, republicano, pedreiro; uma das criadas na clínica suíça, emigrante francesa que sustenta sozinha uma filha pequena, adoptada por um casal francês). Na realidade, a suposta heroína Gabrielle está de facto entontecida por um imaginário amor romântico que a faria mudar de classe social (o jovem tenente, filho de um general - é bom ter presente que uma boa parte do oficialato de carreira provinha da nobreza - , o príncipe encantado). O fim do filme é o princípio de uma nova vida, na qual a presumida heroína principia a tomar consciência que quem esteve sempre ao seu lado, o pai do seu filho, quem sempre a amou foi José, o pedreiro espanhol emigrado no campo francês. 
Película atravessada ainda pelo fim da guerra colonial e pelo domínio francês na Indochina (o impedido do jovem oficial francês é um vietnamita, fiel ao seu oficial). De onde podemos concluir que o terminus das guerras coloniais no planeta continuará a marcar a cinematografia do século XXI : a do Vietnam deu origem a vários filmes de grande qualidade; a do Iraque foi representada, mal, pelo menos em duas obras, por uma malfadada realizadora "imbebed"; até as guerras coloniais do governo salazarento-marcellino apareceram em filme, um deles de qualidade, "Cartas de Guerra", que seguiu o guião de um texto de Lobo Antunes.
Ah, a heroína do "Mal de Pierres" , consta que é agora a nova coqueluche das vedetas francesas, Marion Cotillard.

Mas bosmecês que me desculpem, o Serguei Eisenstein, o Orson Welles, o Hitchcock, o Chaplin, o Rossellini, o Fellini, o Pasolini, o Jean Renoir, o Coppola, o Woody Allen que me perdoem, mas o meu "chamon", a minha liamba, as minhas "ervas", os meus "fumos" são as palavras: um bagaço enevoado do Pessoa, um champanhe translúcido do Eça, um tinto encorpado do Camilo a arrastar uma cachaporra com um prego na ponta e presa ao pulso seco por uma correia, um dão da joalharia beirã Aquilino das serranias onde os lobos uivam, um espumante beliscado a alvarinho da poesia galaico-duriense, ah, isso sim, faz-me os céus revirar, descobrir constelações, inventar galáxias de porvir. São os meus exctasis. Cruzo eternidades, em quartas dimensões, em relâmpagos instantâneos. E tudo por dez réis de mel coado...

Entretanto, foi abatido mais um terrorista islâmico em Orly. Como nem pistola tinha, tentou roubar uma a um polícia, e outro polícia, por sinal uma mulher (talvez por ainda estar próximo o Dia da Mulher...), abateu-o mortalmente. Ultimamente tem sido uma razia: os terroristas estão todos identificados, são todos discreta e democraticamente vigiados e são todos sarralampados antes de poderem gritar um "ai que já me deste!". E terroristas mortos acrescentam as enormes vantagens de se calarem para sempre e de abrirem as comportas a catadupas de comentadeiros que falam por eles. É claro que se pode recorrer ainda às vozes do Além convocadas pela Alexandra Solnado, ou pagar a uma das tarólogas de serviço para deitar as cartas.
Pelo sim, pelo não, eu cá em casa também tenho um Orly. Fica junto ao aparelho de televisão. A malta de família grita sempre "ólhá'li", o que, por uma genial síncrese onomatopaica, derivou em "Órly" . Os assaltos, cá em casa, são todos "Órly !", na televisão. Enfrentamos o terrorismo corpo a corpo, mano a mano, sem seguranças profissionais, privadas, debitadas mensalmente nos salários proletas. Vivemos no reino da Insegurança Total. 


                         Resultado de imagem para Fotos ou imagens do filme "Um Instante de Amor" Resultado de imagem para Fotos ou imagens do filme "Um Instante de Amor"


contudo, confiantes na fraternidade proleta dos

Leopardus   

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