Reflexões do Leopardo

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quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Os empregados de mesa de Caminha

Vou tentar fazer uma síntese dos empregados de mesa de Caminha, vila dos meus amores.
Há quem se apaixone por uma pessoa, pela família, por um grupo de amigos. Eu tenho mulher e família numerosa ( 6 netos que adoro ! ) todos dentro do meu coração, uma tarraçada de amigos e camaradas a quem estimo muito, e, para além disso, uma povoação cuja vida ultrapassa a do conceito de Nação - irá para os seus dois mil anos - um porto natural, uma concha de água plana na foz do Rio Minho - onde o conceito de Nação, inconsciente de o ser, terá começado a soltar os primeiros vagidos.
Casario talhado em pesadas lages de granito a afundar-se no solo, a ressumar humidades, com 500 anos de existência são paisagem vulgar, ainda não seriamente manchada por "maisons" prantadas no centro de relvados "françiús" ou blocos de betão armado com frontarias em vidros duplos de estilaço teutónico.

Convém ainda explicitar que estou a usar a designação de Caminha num sentido territorial demasiado amplo - centrado, de facto, na Vila de Caminha, 6500 residentes nos chuvosos Invernos - , mas que abrange as povoações de Vila Nova de Cerveira (centro de Artes várias e de bienais de Pintura, Escultura, Artes Gráficas, Cinema, Audio-visuais), Lanhelas (com famosas tascas de petiscos), Seixas (até garagens onde se arranjam automóveis com electrónicas arrevesadas como a do meu audi amarelo mostarda), Moledo, praia da alta finança nortenha, Porto incluído, com mansões saídas dos estiradores de excelente gosto dos mestres Sisa Vieira e Souto Moura (é nos jantares degustados nestas mansões que são negociados os casamentos das meninas das boas famílias com os jovens de famílias igualmente endinheiradas para que o Grande Capital continue concentrado nas mãos certas, e não se extravie por algumas veredas de ocasião e hormonas inflamadas), Vila Praia de Âncora sem âncora particular que se lhe assinale além de umas bombas de gasolina.

Enfim, na Vila de Caminha termina, ou inicia-se, conforme o sentido que se adoptar, o famoso pinhal do Camarido ( sim, o do fantástico poema de José Régio ), a rescender a caruma e iodo, onde o ar bronzeia mesmo quando o céu se mostra nublado e a temperatura no Oceano oscila entre os 15 e os 18 graus centígrados ( 18 é considerado "quente" e pouco vulgar ).

Há 2 mil anos atrás de que se abrigavam os coevos caminhenses na sua concha de águas plácidas na foz do Rio Minho?... Dos terríveis Vikings, gigantes louro-arruivados, navegando em navios à vela, balsas de toros, canas, toscos remos, que assaltavam as povoações costeiras para se alimentar, para roubar, para violar mulheres e adolescentes, para passar à espada e ao machado a população viril.
Os coevos caminnhenses, faz dois mil anos manhosos, tentavam atrair os piratas vikings para uns montes graníticos, 600 metros acima das tranquilas águas do Minho , prenhes de apetecíveis cervos, e, se os gigantes arruivados, barbudos, caíssem no engodo de os perseguir, iam-nos dizimando nas montanhas armadilhadas, até culminar no incêndio das ousadas naves piratas, fundeadas na concha da foz do Rio Minho

Pois bem, toda esta região de intensa vida veranil, onde se atropelam galegos, espanhóis, brasileiros, italianos, franceses, ingleses, holandeses, alemães, nórdicos de proveniências não identificadas, russos ( cadinho cultural que os jornais à venda demonstram, a meter inveja às melhores papelarias de Lisboa e Porto ) é posta em movimento e servida por umas equipas de empregados/as de mesa que não excederão umas dezenas e que procurarei tipificar. Observar estes empregados de mesa a trabalhar é exaltante e dedicar-lhes-ia um poema se fosse capaz.

Começarei pelo João. É de Gondarém, aldeia próxima. Foi campeão de judo juvenil do Glorioso ( do SLB, raios!, não do Glorioso acima de todos, postura quase inimaginável, a raiar a genialidade ou a loucura, aqui em terras minhotas ). O João, benfiquista pr'á vida, hoje jovem trintão, alourado, barbas paquistanesas, algumas tatuagens, barriga a empinar apesar de girar numa roda viva, ajoujado de travessas, pratos e imperiais milagrosamente equilibrados, poderia ser ministro dos Negócios Estrangeiros de qualquer potência europeia. Guarda sempre uma palavra optimista para quem quer que seja: fedelho esganiçado numa birra, mãe desesperada sem biberons, russo que só debita "spassibas", "bolchóis", "niets", "tovarichs".
O João de Gondarém e eu ficámos amigos, amizade selada por um calendário que me ofertou com a época futebolística do SLB para todo o 2017 . É de Amigo !...
Na mesma explanada da Vila de Caminha trabalha uma Isabel, mocetona de cabelo ruivo à custa de anilinas, que não é de Gondarém e que, por isso mesmo, afirma que o João percebe pouco da região e dos seus pescados (suspeito que a rapariga é do Sporting o que inquinará os seus juízos sobre o colega). Ela é que é a especialista em solhas, linguados, lingueirões, trutas,  tamboris, douradas, mexilhões, carapaus, sardinhas, espadartes, bacalhaus, atuns do atlântico minhoto - as duas últimas espécies piscícolas não nadam nestas águas, trata-se somente de um romantismo regional perfeitamente atendível. E com esta Isabel não se discute que ela todos os dias arruma as volutas aniladas em rabos-de-cavalo diversos. Poderá até tratar-se de uma ninja do kunfú caminhense !
Ainda na mesma explanada move-se uma doçura minhota, a qual, ao ver-me tão trôpego, sempre me oferece o braço para afastar a cadeira, subir um degrau, guiar-me ao WC. Nunca lhe senti som, apenas sorrisos.
Na dita explanada corre como perdigueiro a farejar freguês por atender uma empregada rodas baixas cuja única preocupação estética é assegurar-se que os longos cabelos negros se dispõem de um lado e doutro da t-shirt amarela (nesta explanada as t-shirt's amarelas são o bilhete de identificação) e que o telemóvel não lhe escapou do bolso traseiro dos "jean's"

Duas explanadas mais abaixo, num espaço mais popularucho, ciranda o meu recém-amigo Carlos , "nha cretcheu" de barba jovem mal semeada, que fala um português com um subtil acento crioulo, que sorri constantemente, e sempre nos impinge uns magníficos pastéis de bacalhau - aqui denominam-se "bolinhos de bacalhau" - , acabadinhos de sair da sertã, em número superior ao que tencionávamos ingerir. Mas, férias são férias, e o Carlos é um campeão crioulo com um fraco pelo ar inglês da minha bela esposa.

Nos restaurantes e explanadas de Vila Nova de Cerveira os empregados-artistas são outros. Um deles, numa alegria exuberante, informou-me, golo a golo, do resultado do Benfica-Guimarães . Nunca consegui inquirir qual o seu nome, porque, quando elevava a voz para demandar, o moço já desandara na tal alegria.
Nessa mesma explanada, um empregado jovem erguia ou baixava a bandeja, conciso, óculos de seriedade, só vigilante a cliente por atender. Nada de conversas, nada de palavras desperdiçadas.
O meu preferido, um verdadeiro imperador dos empregados de mesa, também não gastava palavras. Erguia a bandeja acima da cabeça, dava-lhe uma volta para cada lado, determinava o que era preciso fazer, dominava toda a área em torno. Mentalmente, desejei-lhe toda a sorte do mundo e que todos os deuses imagináveis assim o conservassem para sempre. E quando o enterrassem, se o enterrassem, que fosse de pé !

Finalizo com os empregados-gerentes-donos do "Ninho de Andorinhas" (não me pagaram pela publicidade!), um dos restaurantes onde melhor se come em todo o Alto Minho. O gerente-dono, empregado de expedientes práticos, quando o aconselhei a não dizer a ninguém que o doce que me servira era um "tiramiçú", retorquiu-me com uma palmadinha no ombro, que "estivesse descansado que não o faria", desandando de imediato para comensais de importância financeira superior à minha.
Nos entretantos, eu e a dona-gerente-cozinheira entrámos em confidências e confirmei que o belo arroz à minhota, obrigatório em qualquer prato de peixe ou carne, quase não se cozinha, substituído pela torpeza "cowboy" da batata frita. O belo arroz era frigido com banha, cebola, dente de alho, até ficar acastanhado. Escrevem as bíblias médicas que faria mal que se farta por causa de toneladas de glicéridos. Mas que sabia fantasticamente era inegável. E lá estava o verde tinto que suja a malga para esbater as gorduras. E as bíblias médicas não têm parado de evoluir com os tempos, as modas... e os interesses da indústria farmacêutica !
Aliás, foi no "Ninho" que conheci uma Misé, desalinhada do BE, que adora Cuba, a Ilha da Liberdade, Fidel Castro , o Ché, o Povo Cubano e que considera que a Cuba Revolucionária se tem vindo a constituir em torno daqueles dois líderes carismáticos, já não equivalendo à Cuba de Raul Castro. Dada a barulheira que umas companhias de tambores insistiam em troar por toda a Vila Nova de Cerveira, não tive sossego adequado para lhe perguntar quem imaginava que tinha desembarcado em Cuba a 26 de Julho e quem tinha combatido na Sierra Maestra. Para a Misé o que interessa são os líderes carismáticos, o Povo Cubano, os Santiaguenhos são mui pouco. Ou seja, as raízes bloquistas são difíceis de extirpar...

Quase, quase finalizando (a gente vai aprendendo as argúcias minhotas...) chamo a atenção para uma nova empregada do restaurante finório "Primavera". É uma moça farfalhuda de carnes, que substitui uma colega em licença de parto, aconselhando sabiamente os melhores pratos do dia e as doses suficientes. O restaurante cozinha bem e oferece um licor de tangerina com aroma a mofo suportável. Porém, a nova empregada, farfalhuda, é um "must".

Por fim finalizo mesmo ( já estou farto ! ) . Ontem jantei (quase só temos manjado uma refeição à séria) numa casa de pasto em Moledo. Logo à entrada deparei-me com o Fausto, músico que construiu quase todo o seu fausto a subir "Por este rio acima" e mais umas variantes à viola de gamba e flauta transversal, grande e feliz músico que João Monge adjectivou lapidarmente de "faustérrimo"
O empregado, jovem que ainda não deve ter atravessado a fronteira dos dezoito, foi-me contando que de vinhos não entendia raspas, só emborcava "loiras", de modos que todo o trabalho de lhe perorar uma introdução ao a-b-c do néctar das uvas foi meu.

Uma canseira, tanto mais quanto na véspera tinha tido o desgosto de perceber que afinal os bofetões que apliquei sem razão a um colega, não tinham sido espalmados nas bochechas do constitucionalista Jorge Miranda, mas nas faces de um outro colega qualquer. Procedi mal, mas do mal, antes o menor. Eu e o Miranda fomos condiscípulos no liceu lisboeta Camões, todavia em turmas diferentes. Ele definiu o reitor Sérvulo Correia como "severo", eu defini-o como " um facho de 4 costados, que tinha sido corrido à pedrada do liceu da Guarda durante a ditadura salazarenta" . De facto, a adjectivação define o mundo e os seres humanos...  


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Saudações confiantes na luta colectiva, organizada

o Leopardo

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