Reflexões do Leopardo

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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Vigarices

Escrevo esta edição do meu blogue sem prazer algum, pois ela baseia-se num caso real da minha vida em que fui vítima do chamado "conto do vigário". Representei nele o papel do otário. Um tanso que teria a obrigação de  não ser dadas algumas experiências pessoais anteriores, nas quais também estive à beira de "cair". O meu filho comentou, com os olhos a brilhar de um complexo de Édipo ainda não resolvido, que eu sou o arquétipo dos tolos, no qual um bom vigarista profissional gostaria de tropeçar todos os dias. Mas - que querem ?... - sofro de uma confiança infantil mais forte que todos os alertas enviados pela razão.
Se não tenho prazer em o recordar, então porque o relato?... Por um sentido de dever moral que é tão forte como a tal confiança infantil. Por considerar que ele é, de certo modo, exemplar do tipo de Justiça sob a qual vivemos hoje. 

O caso conta-se em em duas penadas. À porta do centro comercial do meu bairro, fui abordado por um tipo para cima dos cinquenta, fato escuro, óculos escuros, que me abriu os braços efusivo perguntando: " Lembra-se de mim?!...". A perplexidade do meu rosto, desencadeou uma segunda pergunta: " E do meu pai?...".
Perante tanta alegria, para não parecer indelicado, fui balbuciando: "Terão sido meus alunos?... No liceu?... Na faculdade?...".
O que provocava novas manifestações de entusiasmo, um abraço, uns "ora justamente, ora aí está!..." que me impulsionaram, sempre por delicadeza, a fazer desfilar verbalmente algumas situações da minha carreira profissional : "nas escolas secundárias tais e tais, nas faculdades tais e tais". E lá vinham mais entusiasmos, mais "ora bem, sim senhora".

Aqui é necessário abrir um parêntese para defesa da minha tontice que não é raro antigos alunos meus atravessarem a rua, tentarem avivar-me a memória, recordando como as minhas aulas de Filosofia ou de Pedagogia lhes marcaram e modificaram a vida. Normalmente, o meu susto de que possam ter enveredado pela Filosofia ou pela investigação em Ciências da Educação é aquietado, explicando-me que são investigadores na área da Física das Pequenas Particulas, na Sorbonne, ou professores no Técnico, ou em Direito Penal, ou em  Psiquiatria, mas que as minhas mui debatidas aulas foram determinantes na sua opção e investimento científico.

Parcialmente justificada a minha confiança pueril, retornemos ao vigarista do centro comercial do meu bairro - denominêmo-lo de Lírio, nome fictício, pois o processo continua em segredo de Tribunal e não quero correr o risco de invalidar o meu testemunho de acusação tornando público o desenho do acontecido .
Sentindo que a minha confiança estava conquistada, o tipo acelerou a fundo, entrou na matéria que o trazia até mim: "Que a sua empresa, da qual era porta-voz, ia apresentar no mercado, no Parque das Nações, dentro de duas semanas,  um super-telemóvel que dava dez a zero a todos os telemóveis existentes, permitindo todo o tipo de mensagens, jogos, visionamentos, compras, vendas,  falar com qualquer ponto do planeta num ápice, quiçá mesmo com estações na estratosfera (deste último ponto não estou muito seguro, a minha atenção já se devia ter afundado naquele oceano de tecnologia ultra-hodierna). 
Que era uma coisa à escala europeia, envolvia capitais alemães, franceses, ingleses, espanhóis - "aliás, tinha ali mesmo dentro do carro a "Madame", representante do capital espanhol, que me ia apresentar imediatamente; que a desculpasse, pois a "Madame" falava pouco, só falava castelhano!". Do interior de um enorme carro preto, uma loira obviamente platinada, encadernada num enorme casacão claro e nuns óculos discretamente esfumados, estendeu-me dois dedinhos e um "si".

Um artista o Lírio !... Pois eu, com o velho adágio luso cravado no coração - "de Espanha nem bom vento nem bom casamento" - se a "Madama" tivesse pronunciado uma frase inteira, teria desconfiado de imediato da sua espanholidade. Mais tarde, a polícia de investigação viria a  dar razão à minha aversão instintiva pela "Madame" informando-me que ela não passava de uma amante, a quem usara ocasionalmente, como a outras; o Lírio mais frequentemente "trabalhava" com a mulher e uma filha. 
Não lhes disse que o tipo era um artista?!... Com um facies encardido, picado das bexigas, mal barbeado, de porte tudo menos atlético, barriga a empinar, não levava à certa apenas os vigarizados, embarrilava igualmente as "colaboradoras". Decerto por isso era conhecido nas cadeias e nos meios policiais pelo Bingo! (exactamente, a palavra que se grita no jogo do loto quando se preenche um cartão).
Resumindo, concluamos que o profissional era um verdadeiro professor. Só dava uma lição, sempre a mesma, todavia a variedade do público atingido, tornava-a infinita nas suas variantes. Quem vê caras, não imagina as artes que albergam por detrás... 

E o artista entrou na parte substantiva. Desejava ter uma atenção para com o seu antigo e querido professor. Oferecer-me um exemplar do fantástico telemóvel que iam lançar no Parque das Nações, com a presença de figuras dos Estados - lançamento para o qual eu estava, evidentemente !, convidado - telemóvel que ia  modificar o rosto do futuro. Apenas teria necessidade de me cobrar uma quantia irrisória, um terço do seu valor real, para apoiar custos de transporte, portes, beberete, eteceteras. Coisita aí para uns  míseros 500 euros. Uma bagatela... Verdadeiramente, gostaria de me oferecer o telemóvel do futuro inteiramente gratuito, porém isso criaria situações de desequilíbrio em relação, até, às tais personalidades dos Estados. Um vero artista o Lírio... 

Convém abrir um novo parêntese para explicitar que eu, em matéria de telélés, qualquer telélé marreco me sobeja. De hábito, uso um décimo das capacidades da maquineta, nunca chego a entender mais que 15 % das suas funções e praguejo vernáculo quando o estupor não me obedece de imediato. Aceitei a "oferta" do Lírio para ajudar ex-alunos. De facto, a estupidez humana (tal como a inteligência e a bondade) deve ser o exemplo mais completo que conheço de incomensurabilidade.  

Com a minha confiança e vontade de ajudar conquistadas, a partir daí foi uma correria de um terminal de caixa bancária para outro, finalizando dentro da própria Caixa Geral de Depósitos do Bairro, a qual estava à beira de encerrar. 

É preciso explicitar que a correria para a dependência local da CGD - os terminais das caixas bancárias já não permitiam mais levantamentos naquele dia... - só reforçou a minha confiança no bicho Lírio. As dependências da CGD possuem sistemas de câmaras de vigilância internas que filmam o que está a acontecer e conservam o filmado durante alguns meses. Muitas vezes um ou dois polícias estaciona dentro das dependências. Eu sou particularmente conhecido, e mimado, na dependência da CGD do meu bairro; em qualquer momento podia suster o levantamento, pedir a identificação do meu suposto ex-aluno.

Até comprei um cheque para perfazer a quantia solicitada !... No total tinha-se evaporado das minhas reservas bancárias a "ninharia" de 580 euros. Só já no exterior do centro comercial do meu bairro, ao ver o suposto meu ex-aluno quase correr para o tal carrão negro, topo de gama, os meus neurónios acordaram do encantamento da boa-vontade e solicitude, e puseram o filme a desfilar às avessas: " Descola as pestanas, estúpido Leopardo, foste tu que lhe forneceste todos os dados!!...". Ainda fui a tempo de reter a matrícula do carro em fuga. Soube-se, depois que tinha sido carro roubado uma hora antes e, logo a seguir, abandonado num bairro adjacente. Em suma, um "Bonnie and Clyde" à portuguesa, sem metralhadoras nem pistolas...

Tudo isto que Vos teclo, relatei em Tribunal, orientado pelo inquérito minucioso do Promotor Público. Relatei com pormenor, sempre carpindo a minha montanhosa parvoíce, a minha perplexidade por um dos advogados de defesa - entretanto sumido no decorrer do processo - dentro de uma esquadra da polícia, com polícias presentes, me ter proposto, "off the record",  uma indemnização no valor total em que eu me dizia lesado, se eu desistisse da queixa , retorquindo-lhe eu que o dinheiro que me era devido o receberia imediatamente, mas desistir da queixa nunca o faria por mais anos que o processo levasse.
O Juiz Superior do Tribunal (existiam e estavam presentes dois juízes), o Promotor Público, outros advogados das partes (as vigarices pelas quais o Lírio continua a ser julgado somam várias dezenas...) ficaram tão impressionados com o detalhe e a coragem do meu testemunho - nas minhas costas estava uma plateia toda preenchida por familiares da flor, presumido réu, todos de etnia cultural cigana - que só insistiram em inquirir se eu, em algum momento, me sentira coagido a entregar as verbas referidas. Precisei que não senhora, tinha-as entregue numa base de confiança e solidariedade; se me tivesse sentido coagido, teria reagido violentamente, o desfecho teria sido outro.
Uma por outra testemunha de acusação alegavam coacção violenta, a que não tinham cedido por doença ou pelo adiantado da idade.
Também me causou perplexidade, a tolerância (para dizer o mínimo) com que os polícias presentes no Tribunal tratavam os familiares da etnia cultural cigana, permitindo-lhes que circulassem por toda a parte, com telemóveis "dernier cri" - que era obrigatório estarem desligados - num intercâmbio contínuo, que, era presumível, se estendesse igualmente aos advogados de defesa presentes na sala do Tribunal . Tolerância que contrastava com o rigor que faziam apenas recair sobre as testemunhas de acusação.

E já passaram 3 anos sobre o conto do vigário de que fui vítima... Já fui ouvido umas 6 vezes por diferentes polícias de investigação que pareciam saber o que estavam a fazer, identificando o Lírio por detrás de um vidro como se observa nas séries policiais... Se faltar a uma sessão convocada pelo Tribunal (já passam de 3), ou apresento um atestado médico atempadamente, ou nomeio um advogado que me represente (com os custos inerentes) ou incorro numa coima que pode ultrapassar os mil euros. Como comentava uma outra testemunha de acusação, advogado animado de sentido cívico, que presenciara o Lírio em actividade artística profissional, nós, os vigarizados, somos agora reféns da Justiça portuguesa.

Aproveito esta edição do blogue para me dirigir aos familiares do Lírio que acorreram em seu auxílio. Decerto isso não me seria permitido dentro do Tribunal, os juízes travar-me-iam, alegando que estava a fazer uma declaração política. Objecto, porém, que todas as nossas posturas na vida são políticas, pois decorrem de uma ética implícita, de uma concepção moral da organização económica, social, cultural desejável da Sociedade na qual vivemos, somos criados, trabalhamos.

Dirigindo-me, portanto, à plateia de etnia cultural cigana no interior da sala de Tribunal (insisto no facto de que etnia, nos dias de hoje, só tem sentido do ponto de vista cultural, visto que o conceito de "raça" foi arrasado pelo avanço da investigação científica) : decerto entre eles existiam uma série deles tão ou muito mais inteligentes que eu próprio; ora, enquanto não assumirem que integram os cidadãos portugueses, que integram a generalidade dos seres humanos, e que não constituem um grupo distinto, com uma moralidade particular, e com regras morais distintas, e insistirem numa estratégia de confrontação violenta, a Sociedade não os respeitará, e embora possam ter sucessos episódicos e transitórios, acabarão inevitavelmente por ser esmagados.
Não espero que esta minha dissertação seja acolhida pela plateia na minha retaguarda no imediato. Mas, estou profundamente convicto que as minhas palavras farão o seu caminho nas suas consciências e que os nossos filhos poderão vir a discutir diferenças num clima de compreensão. Aposto a minha vida nisso.  

Noutras escalas, Sua Excelência Excelentíssima nos Patamares do Estado e a Excelência Logo a Seguir já relegaram para as "calendas de Maio" os aumentos dos salários mínimos, os aumentos das reformas mínimas e, no respeitante aos impostos, logo se verá (ou improvosará...), é tudo uma questão de "timing"... Vão argumentando, com rópias de "distinguos", que é preciso regatear com a chanceler Merkel, com o Banco Central Europeu, honrar os nossos compromissos com a NATO e a defesa da Civilização Ocidental (leia-se Capitalismo). 

Concluindo, em tempos de vigarices diversas, e de tomo e consequências mui mui mui diversas, somos obrigados a pensar a duas cabeças: a cabeça dos cidadãos sérios e a cabeça dos cidadãos trafulhas. Este repensar constante deixará estigmas para sempre, mas decerto tornará mais sólidas as conquistas futuras e de Futuro.

A título de exemplo, fecho com uma foto de Alves dos Reis, considerado o maior burlão da História portuguesa do século XX. De aspecto simpático, não acham?... São-no quase sempre...  


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Saudações confiantes na luta organizada de massas

do Leopardo                      
   

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