Reflexões do Leopardo

Reflexões do Leopardo
Reflexões do Leopardo

segunda-feira, 11 de julho de 2016

A releitura da História - num sentido reaccionário - que se faz no Festival de Teatro de Almada

A historiadora e actriz Joana Craveiro - é licenciada em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa; tem um mestrado em encenação pela Royal Scottish Academy of Music and Drama, finaliza um doutoramento em Estudos Performativos na Universidade de Roehampton, em Londres - propõe-se e propõe-nos um projecto aliciante: dar voz aos cidadãos anónimos que de alguma forma viveram os acontecimentos.
Aliás, esta obra teatral que nos apresenta - "Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas" - pertence à sua tese de doutoramento, com o mesmo título, na qual assumiu o compromisso de a representar em palco.

Ora, hodiernamente, quando se coloca a questão da "objectividade" em Ciência, já ninguém da Comunidade Científica a coloca como Isaac Newton - as leis científicas são o retrato exacto do Real, concepção que Newton sintetizava na orgulhosa fórmula "não faço hipóteses" - pois está inscrito nos "books" de epistemologia que, mesmo nas ciências mais exactas - Física e Química - , a própria observação é um factor de distorção do Real.

Na História - disciplina das Ciências Humanas onde mais se sente a influência da ideologia (consciente ou inconsciente) do investigador que a exerce - as coisas não se adiantaram grandemente à forma como Heródoto, há dois mil anos atrás, as colocava: o rigor da datação dos documentos históricos ( tijolos em barro, tábuas enceradas, couro gravado, papiro, papel, pinturas a óleo, pinturas rupestres, mosaicos, azulejos, desenhos, gravuras, ossos, monumentos em granito, mármore, calcário, palácios, igrejas, catedrais, abadias, conventos castelos, fortalezas, etc, etc). Onde se avançou foi nos instrumentos técnicos para precisar a datação: raios X , sonares, datação dos terrenos - por exemplo, ao procurar a cidade de Tróia, centro da Guerra de Tróia relatada na Ilíada e na Odisseia, encontraram-se 7 cidades sobrepostas umas sobre as outras, o que era vulgar na época - análise linguística, criptografia, técnicas das análises de conteúdo indutivo-dedutivas - técnicas desenvolvidas pela espionagem na segunda guerra mundial para determinar as orientações dominantes do pensamento dos inimigos, dos adversários... e dos aliados - análise estatística, etc, etc. 

A actriz/historiadora Joana Craveiro desconhece isto? Não pode! As licenciaturas da Universidade Nova de Lisboa actuais não são piores que as pós-graduações em filosofia, em filosofia da linguagem, os mestrados em ciências da educação que eu realizei há duas décadas atrás nas Faculdades de Filosofia e de Ciências da Educação da Universidade Clássica de Lisboa, e estas coisitas basilares estão lá escarrapachadas em letras gordas.

Quais as consequências disto? As consequências são que se a "historiadora" J.Craveiro pretende pôr em pé de igualdade testemunhos muito diversos, de confirmação muito variável e duvidosa, não lhes atribuindo uma hierarquização prévia (adequada ou não, mas discutível), tendo a intenção expressa de inferir essa hierarquização no final da investigação/tese de doutoramento/espectáculo teatral só pode chegar ao resultado a que chegou: submergir o leitor-espectador num magma de migalhas de testemunhos contraditórios que disparam para todas as direcções.
E a "historiadora" da História portuguesa dos "últimos 80 anos" passou a uma contadora de "istórias" da História. O que será decerto mui favorável a um espectáculo teatral. O que lhe granjeará decerto simpatias volúveis em muitos quadrantes. O que abona pouco em termos de seriedade científica.
Dou um breve exemplo: ao pôr em pé de igualdade pessoas que lutaram contra o fascismo salazarista e colonial e os retornados das ex-colónias, J.Craveiro dá a fala à prima da tia retornada, cuja prima não era retornada, mas na casa da qual se alojavam retornados (alojamento não-gracioso). Entretanto, J.Craveiro "esqueceu-se" de esclarecer que os 300 mil retornados foram enviados para o rectângulo nacional, num ápice, por uma frota de aviões disponibilizada pelo Governo dos EUA, com a intenção de desestabilizar o clima social e as eleições em processo.

Não é a única facada que a historiadora/encenadora/actriz dá num ensaio sério, científico, objectivo, mesmo de uma objectividade conturbada pela subjectividade pessoal e colectiva, de reconstrução da História. Não é a única nem a pior.
Como J.Craveiro nasceu em 1974 e o seu álbum de recordações pessoais do 25 de Abril seria obviamente escasso, mesmo admitindo que foi possuidora de uma memória infantil acima da média que começou a coleccionar por volta de 1978/80, J.Craveiro recorreu às memórias de José Antunes Ribeiro, amigo da sua família.
J.A.Ribeiro foi um editor, dono de uma livraria que funcionou em Benfica, que colocou no mercado, a partir de 1969 (no auge da guerra colonial portuguesa nas Áfricas e da guerra do Governo de Washington contra o Vietname) colecções - como a "Ulmeiro", a "Assírio e Alvim" - J.A.Ribeiro que colaborava na revista "O Tempo e o Modo". Ora tanto estas colecções como a revista citadas punham de facto em causa a legitimidade, por parte parte colonialistas, das guerras coloniais, porém padeciam dos influxos ideológicos maoístas
Ou seja, a historiadora/encenadora/actriz que prometeu inferir as suas conclusões no termo da sua investigação, começou efectivamente a introduzir uma interpretação ideológica sobre o fascismo salazarento e as guerras coloniais, nomeadamente as portuguesas, desde o início. Ainda  por cima porque o material fornecido pelo maoísta J.A.Ribeiro é absolutamente dominante, em termos quantitativos, em relação a outros materiais recolhidos. Isto é, J.Craveiro começou a atraiçoar o que prometera desde o início da investigação e da representação em cena.

Mas, J.Craveiro em matéria de traições foi mais longe e mais fraudulenta.
No início dos anos 70 - década na qual as guerras coloniais atingiam o seu auge na Indochina, a seguir no Vietname, na Guiné portuguesa, Cabo Verde, Angola, Moçambique (no planalto de Moeda, terra dos Macondes, a guerra era de uma violência ímpar) - , mais exactamente a 12 de Outubro de 1972, a PIDE/DGS assassinou a tiro o estudante Ribeiro dos Santos, num dos átrios do ISCEF. Ribeiro dos Santos era um estudante antifascista que se vinha destacando pela sua coragem nas lutas dos estudantes universitários. O MRPP, que sempre se destacou pela sua violência verbal, pela sua falta de princípios éticos, pelo seu oportunismo político, pela falsificação dos acontecimentos, deitou imediatamente a mão à legenda Ribeiro dos Santos e declarou que a PIDE tinha morto um dos seus militantes de relevo.
J.Craveiro sabe disto? Claramente, pois na sua investigação/peça de teatro chama-lhe "estudante antifascista" e não "estudante maoísta", mas enquadra estas recordações a seguir às memórias de uma militante maoísta - que não falou quando presa pela PIDE - , de tal forma que a aura do maoísmo transitou para cima de Ribeiro dos Santos... e os mortos não falam.

A forma como esta militante maoísta é retratada pela historiadora/encenadora/actriz é igualmente reveladora do "parti pris" ideológico assumido, porém escamoteado, pela Craveiro.
A militante maoísta justamente figurada pela sua coragem na prisão, era filha de um casal do PCP, que ameaça a filha de não voltar a entrar na casa paterna se "falasse" na prisão. A severidade e intransigência da postura comunista, definida num pequeno opúsculo de Álvaro Cunhal, é contrastada com a flexibilidade e tolerância das posições maoístas.
Podemos avaliar a fiabilidade desta "flexibilidade e tolerância" maoístas através das declarações do editor José Antunes Ribeiro. Ribeiro entregava a distribuição das publicações da Ulmeiro, da Assirio e Alvim, d' "O Tempo e o Modo" a um "bufo" da PIDE, bufo que confessava que o era. Ribeiro defendia a sua contratação do bufo, pois assim este não era preso e levava a distribuição a pessoas e povoações impossíveis para outros. 
A historiadora/encenadora/actriz "esqueçe-se" de explicar que, com uma distribuição deste calibre, a PIDE/DGS ficava igualmente na posse das pessoas e endereços que recebiam as publicações...

É fastidioso desmontar um raciocínio e uma peça teatral que foram construídos com tantos alçapões e armadilhas, todavia não encontro outro caminho para o fazer.
No essencial, o fundo do raciocínio/espectáculo teatral pode resumir-se assim: admitindo de forma sucinta a influência do PCP na eclosão do 25 de Abril- e seria caricato não a admitir a um Partido que pagou a sua actividade com tantos assassinados no Tarrafal, com 340 anos de prisão, somados só nos membros do Comité Central, em todas as prisões do fascismo salazarento (Caxias, Peniche, penitenciária ao cimo do Parque Eduardo VII, etc, etc), com tantos poetas, cantores, pintores, desenhadores, músicos como Ary dos Santos, Adriano Correia de Oliveira, Rogério Ribeiro, Pavia, Lopes-Graça - o PCP serve de caução a uma imaginária "isenção" e dá relevo ao "parti pris" assumido pela Craveiro.
Ainda mais e mais fundo, ao esboroar a influência cimeira da actividade do PCP na sociedade portuguesa - continente, ilhas, colónias, emigração - no movimento sindical, nas diversificadas frentes de luta unitárias em torno de reivindicações locais, culturais, etc, Craveiro está a atingir um princípio crucial do marxismo-leninismo: a necessidade de existir uma organização política estruturada, discutindo as suas questões colectivamente, mas orientada por uma direcção central.

Isto quer dizer que não existem aspectos bem conseguidos na sua obra? Não, a obra a nível de representação teatral é bastante bem concebida na encenação e representação. Reveste-se de uma atmosfera artesanal, intencionalmente tosca - mostra, no telão, páginas de um caderno quadriculado onde se vão sobrepondo fotos, capas de publicações da Ulmeiro, da Assírio e Alvim, mapas com linhas traçadas a marcadores fluorescentes, dísticos simples, escritos à mão, com a palavra "PIDE" - o que lhe conferirá um carácter (falso) de verdade primigénia para um público menos atento ou menos informado.  

Enfim, Joana Craveiro é uma investigadora/encenadora/actriz que faz trapaça ao defender as suas opções ideológicas e políticas, todavia é apenas uma pessoa.

Mas, é legítimo perguntar por que razão ou razões, um Teatro e um Festival com as responsabilidades públicas do Teatro Municipal Joaquim Benite, TMJB, não enquadra politicamente a investigadora/encenadora/actriz J.Craveiro. É curto defender-se afirmando que a peça é um prémio do público no ano anterior. Estão a repor a peça, a dar-lhe voz pela segunda vez ! Pergunta-se: é esta igualmente a postura política do TMJB e do Festival de Teatro de Almada?
Pessoalmente, tenho as maiores dúvidas que opções destas se integrem numa linha de fidelidade ao pensamento e à herança de Joaquim Benite, presença maior do teatro português dos séculos XX e XXI.

   

     Resultado de imagem para fotos ou imagens da peça de Joana Craveiro        Resultado de imagem para fotos ou imagens do Festival de Teatro de Almada



Amplexos amistosos do

Leopardo















  

Sem comentários:

Enviar um comentário