Reflexões do Leopardo

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quarta-feira, 1 de junho de 2016

A partitura da Merda

Hesitei entre se devia dar o título a este blogue de "A partitura da Merda" ou "A partitura de Merda". É óbvio que se emprego o "da" , estou a querer significar que vou partiturar sobre "a merda". Se uso o "de", estou a qualificar a partitura. A língua portuguesa é muito traiçoeira e a merda também. Ele há merda e merda (como os Bancos, "for instance")...
Optei pelo título do frontispício, pois se trata de confrontar litigiosamente a peça há 4 anos em cartaz, a correr mundo, a acumular prémios, denominada "La Merda" com a peça "La barque le Soir" , encenada pelo prestigiado encenador francês Claude Régy , a partir do influente escritor norueguês Tarjei Vesaas.

Sobre "La Merda" já teclei. Uma actriz italiana de excepção, Silvia Gallerano , nua em palco, figurando-se menos bela do que é naturalmente, sentada numa cadeira alta de desenhador, com rodinhas, a fazer desfilar perante os nossos olhos, durante uma hora e 40 minutos, - através de entoações diversas, de travagens e acelerações bruscas da voz, de sussurros, de "coquetteries", de urlos selvagens - os diferentes personagens nossos contemporâneos que cometem o crime de lesa-cultura de travestirem a arte cénica em espectáculos acéfalos de "enterteiner's ". A peça é de um escritor e encenador italiano, Cristian Ceresoli , 41anos, de uma sinceridade desarmante e contraditória, que, curiosamente se expressa menos bem oralmente que a actriz que o interpreta. A peça deixa o público arrasado pela magnificência da interpretação (não vi mais de uma dúzia de actores daquele nível na minha convivência de mais de 4 décadas com a escola-teatro de Joaquim Benite) e pela verdade substantiva do que representa.

"La Barque Le Soir" pode ser sintesidado na seguinte fórmula: um maximalismo de virtuosidade profissional apresenta um minimalismo de substância pensável.
Um actor, Yann Boudaud , num exercício de virtuosismo doloroso, contorce-se à boca de cena, quase às escuras, a uma velocidade lenta lenta, a um cagésimo de imóvel, para nos simular as intermitências da... catalépsia. 
Como é sabido, a catalépsia é um estado de vida a roçar o limiar da morte, no qual a consciência desce aos patamares do subsolo. Depois de Saramago ter inventado uma suposta viagem ao Além da Vida, numerosos autores têm intentado variações sobre o tema. A verdade, porém, é que todos falam da margem da Vida. Até hoje ainda ninguém seduziu o lendário cão Cérbero.
O generoso público do TMJB não conseguiu disfarçar a ausência de entusiasmo que as intermitências da catalépsia e o minimalismo do pensável lhe suscitou.

Após ter proposto esta confrontação litigiosa, parafrasiarei o surpreendente Mário de Carvalho e afirmarei que "quem disser o contrário... é porque tem razão". Vamos, pois, à liça, que não sou um leopardo de bonanças.

Notas finais, dado que se trata de uma despedida. Um camarada, excelente militante de tertúlias poemáticas, meu admirador talvez excessivo, asseverou-me que tenho tanto de escritor superlativo como de vaidoso.
Olha que não, olha que não Diogo. É claro que tenho os meus momentos de vaidade, senão nem saberia do que se trata quando se fala da matéria. Aliás, é um dos sete pecados mortais (a soberba), todavia não me julgo instalado neste pecado capital. Até porque ele significa o reumatismo e o  alzheimer artístico. Quem pensa que atingiu o topo, não se esforça por subir mais (Hegel e Wagner avaliaram-se assim). Quando simulei vaidade estava apenas a tentar passar à prática artifícios de provocação do leitor que andara a estudar em Dario Fo e Franca Rame .
Até porque é para mim evidente que este blogue é um fracasso: não consigo mais do que cinco "vizualizações" (o que não implica necessariamente leituras) por dia. A impotência é minha, todavia, sabem-me a pouco, a mim que dispendo 5 a 6 horas diárias a prepará-lo. A minha admiração pelos heróis do PCP - que, durante décadas, imprimiram, esconderam, transportaram, distribuíram o "Avante!" sem terem ideia do seu êxito, correndo o risco da prisão, das torturas, da morte - não tem senão crescido ainda mais. 

Penúltima nota: não percam aos Sábados à noite, na RTP/canal 2, uma belíssima introdução ao mundo da música, sobretudo da Ópera, mas também da Arte em geral, guiados pelo saber, talento e entusiasmo de um músico, pedagogo e apresentador excepcional. 
Por exemplo, ele defendeu na sua edição de Sábado ido, uma concepção sobre Wagner contrária à minha. Não me convenceu (sou burro portuga, mui "testardo"), mas senti-me enriquecido depois da emissão. 

Por último, exijam, com maiúsculas, ao Rodrigo Francisco, director do Teatro Municipal Joaquim Benite, TMJB, e do seu Festival , que volte a trazer a Almada "La Merda". O seu Público merece-o amplamente. Nem todas as Merdas são iguais.


LA MERDALA MERDA


La barque le soir. 
Foto: Pascal Victor | ArtComArt.




Amplexos amistosos,

confiantes,

litigantes,

até sempre

Leopardo 
  

1 comentário:

  1. Concordo plenamente, ambos excelentes espectáculos! Um grande beijinho da Ana Carriço (TMJB)

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