Reflexões do Leopardo

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Reflexões do Leopardo

sábado, 18 de junho de 2016

Todo o teatro é político, a Ópera, "dramma per musica", é política

                                                   Va', pensiero, sull' ale dorate
                                                    va' ti posa sui clivi, sui colli,
                                                    ove ollezzano tepidi e molli
                                                    l'aure dolci del suolo natal !

                                         Vai, pensamento, sobre as tuas asas douradas
                                         vai, e pousa sobre as encostas e colinas
                                         que perfumam tépidas e doces
                                         as suaves brisas da terra natal !

Os versos acima citados são os primeiros do mundialmente famoso Coro dei Schiavi Ebrei 
 ( Coro dos Escravos Hebreus ) que o público italiano assumiu como o grito da sua libertação do jugo austríaco, logo na estreia - a 9 de Março.1843, no La Scala di Milano - e passou a cantar como hino nacional ( equiparável ao "Grândola Vila Morena" após o 25 de Abril ). 
O realizador de cinema, encenador de teatro, amante indisfarçado de Ópera, Luchino Visconti, realizou o belíssimo filme "Senso" (1954), com intérpretes inesquecíveis - Alida Valli e Farley Granger -  no qual imaginou essa estreia com centenas de panfletos e cravos vermelhos a caírem sobre os oficiais austríacos sentados na plateia.

Giuseppe Verdi morre em Milão, a 29 de Janeiro de 1901, no auge da glória aos 88 anos. Seguindo o cortejo fúnebre, 250.000 italianos tomaram as ruas ao som do "Va', pensiero"

Verdi, ateu e anti-clerical, nunca escondeu que o propósito principal das suas óperas era político e as questões amorosas eram subsidiárias, servindo sobretudo para tornar credíveis no enredo cénico a rede mais vasta e complexa de relações humanas, familiares, sociais, políticas.


A ópera "Nabucco" de Verdi parte de uma peça francesa sobre Nabucodonosor e de um bailado sobre o mesmo tema, condensando, entretecendo personagens reais como Nabucodonosor - sedento de poder absoluto e divinizado -  e outras totalmente inventadas como  Abigaille - versão feminina émula de Nabucco na voragem do poder - ou Fenena, filha de Nabucco, personagem subordinada aos cânones do amor romântico da segunda metade do século XIX (como pode, por exemplo, ser descrito nos romances do grande Camilo Castelo Branco).

E a questão central é exactamente a interrogação : o Amor ou o Poder? E a resposta é : não existe meio termo possível, o Poder vencerá sempre... a menos que Os Escravos, o Coro, solucionem o paradoxo e o elevem para uma sociedade nova.

O facto de a ópera se basear em trechos da Bíblia, com um rei assírio (por sinal a quem são atribuídos os Jardins Suspensos da Babilónia, que dez séculos depois influenciaram o planeamento árabe de Granada) , ocorrida 2 mil anos antes, explica que o lápis azul da censura tenha sido relativamente condescendente com a ópera e deixado passar expressões como "morte aos estrangeiros" que visavam quase explicitamente os ocupantes austríacos.
  
É corrente que Verdi exigia impossíveis às vozes dos seus cantores (regra geral, abreviando-lhes a vida profissional; o argumento de que depois de Verdi já se foi mais longe na fasquia das exigências vocais, não invalida os factos) como sucede na obra "Nabucco" com as exigências vocais às personagens de Nabucco e Abigaille. A primeira vítima destas exigências foi Giuseppina Strepponi, que era uma diva na época. Sucumbiu à pressão musical, perdeu a voz demasiado cedo. Foi companheira e mulher de Verdi quase toda a vida, sobrevivendo-lhe três anos e tal, enterrada a seu lado no jazigo familiar, de acordo com os desejos redigidos por Verdi. 

E que tal foi a execução do "Nabucco" , no São Carlos, em Lisboa, no dia 14 de Junho do ano da Graça do Senhor de 2016?
Excepcional !! A Abigaille, personagem para sopranos de qualidade ímpar, visto que a sua voz terá de sobrepor-se, enquanto sobe e desce a pauta do "belcanto", à orquestra, aos outros cantores, ao Coro, e ainda representar , foi interpretada por Elisabete Matos, que é catalogada pelos especialistas e pelos contratos no patamar mais elevado das cantoras a nível mundial, e que seria considerada a actual Callas se fosse italiana (mesmo descontando a minha subjectividade entusiasmada).
O Nabucco foi cantado pelo barítono Àngel Òdena, tarragonense cujo prestígio e carreira não param de subir dentro e fora de Espanha, elevadamente premiado também no repertório de zarzuela, esteve à altura de Elisabete Matos, o que, só por si, é uma nota alta.
Justo é também destacar entre os cantores a mezzo-soprano Maria Luísa de Freitas, na "Fenena", e a soprano Carla Simões, na "Anna", ambas portuguesas. 
O cenário do "Nabucco" apresentado no São Carlos - de Renato Theobaldo , brasileiro, segundo creio - foi surpreendente de imaginação e versatilidade. Deu uma trabalheira para ser desencaixotado e remontado de novo.
A direcção musical - Antonio Pirolli -, a Orquestra Sinfónica Portuguesa, o Coro do Teatro Nacional de São Carlos, o maestro titular do Coro - Giovanni Andreoli -, a encenação, o desenho de luzes, os figurinos tiveram uma participação exemplar nesta récita de excepção.

Ora, tendo consciente que todo o teatro nasce com a democracia grega há dois mil e quinhentos anos, é dela o seu espelho, e é essencialmente político, porque é na arena-palco que as diversas forças sociais e políticas se defrontam - não sou eu quem o afirma, mas personalidades tão diferentes como o encenador alemão de reputação mundial Peter Stein, o pianista e barítono espanhol Ramon Gener, excelente pedagogo e divulgador de Ópera que dinamiza um programa sobre Ópera transmitido pelo canal 2 da TV pública portuguesa aos Sábados à noite, ou a pintora mexicana Frida Kahlo, a qual enuncia numa fórmula lapidar "quem não toma partido, não vive inteiramente" (desculpem-me se a citação não for irrepreensível, porém, cá o Leopardo a citar de memória é... um artista) - sabendo que a lotação do Teatro São Carlos era nessa noite de 844 lugares (o máximo que pode atingir, com outras condicionantes do palco, da plateia e dos camarotes, é de 950 lugares para os bons e estimáveis espectadores), a questão que não pára de me martelar os neurónios é por que é que se viam tantos lugares vagos ?

Ná, ná, não venham com essa conversa de que a Ópera é um espectáculo elitista, os bilhetes são muito caros, as histórias são de faca e alguidar, ninguém aguenta ouvir durante 10 minutos um cantor a berrar amores para uma janela de balcão onde está debruçada uma donzela gorda, de seios fartos.
Primeiros, logo para destrunfar, eu vejo Ópera faz décadas, tenho assinatura na plateia e pago entre 30 a 37,5 euros por récita - há quem veja por menos, se arriscar e comprar o bilhete no próprio dia; porém, com frequência, a bilheteira está esgotada.
As histórias são de faca e alguidar? Então porque lêem os correios.da.manhã deste país? E aquela cinquentena de mortos em Orlando? Ou as claques à trancada - murros, pontapés, cabeçadas, navalhadas, "tasers", "very lights", tiros - em Marselha ou, "desportivamente", dentro dos estádios de futebol? É a Ópera que é de faca e alguidar ou a Vida real, quotideana, comezinha?
E, quanto aos cantores a urlar em palco dez minutos de amor, querem abranger igualmente as bandas rockueiras, com umas garotas abundantes, a menearem os traseiros numas coreografias repetidas à exaustão, e, no final, quando a assistência está entre o aturdido e o enlouquecido pelos mega-decibéis, pelo menos o vocalista principal, que uivou e saltou o tempo todo, parte a guitarra e espoja-se no palco? Como devemos apodar "isto"? Manual sonoro para a guerrilha urbana?...

Não Amigos, no dia 14 de Junho.2016, uma terça-feira, o São Carlos não estava esgotado, porque o País, pelas 20 horas, estava prantado em frente de uma televisão, de um telão público ou no próprio estádio a engurjitar cada um dos malabarismos que o Ronaldo, o Quaresma, o Nani puseram em prática.
16.000 portugueses portugueses deslocaram-se ao estádio de Saint-Étienne, em França, com a motivação e a justificação de assistirem ao jogo, o que lhes terá custado, fora os consumíveis, cachecóis, t-shirts, bonés, pinturas de guerra, no mínimo, uns 15 bilhetes de Ópera, não entrando em linha de contabilidade com extravagâncias do domínio pessoal da intimidade reservosa.

E isso queridos amiguinhos foi uma postura política. Induzida, manipulada, o que entenderem, mas uma postura política. Um voto forte na mediocridade cultural, por muito bem que joguem os craques e mui acertado que se mostre o treinador.
A confirmar o que acabei de escrever, lá pudemos observar, nos camarotes de honra, Suas Excelências Excelentíssimas, o Primeiro Primeiro e o Primeiro Logo A Seguir, prontos a derramarem-se sobre a equipa, incluídos os apanha-bolas... caso os rapazes tivessem ganho. Que isto dos afectos e das efusões também têm medida.




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E, por hoje, "that's all folks", 

 de um Leopardo um bocadinho zangado 

              
              

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