Reflexões do Leopardo

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quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Os Tartarin de Tarascon

Escolhi para cabeça desta nova edição do meu blogue a ambivalente personagem Tartarin de Tarascon do inventivo, irónico, amável escritor francês Alphonse Daudet.

Se procurarem na Wikipédia, ficarão a saber que Daudet nasceu em Nîmes, no Languedoc, a 12 de Maio de 1840 e morreu em Paris, a 17 de Dezembro de 1897 (com 57 anos), vítima de uma ataxia (degeneração ou bloqueio de áreas específicas do cérebro e do cerebelo) que muito o fez sofrer nos últimos quinze anos da sua vida.
A Wikipédia também lhes relatará que era filho de um fabricante de tecidos e comerciante, cuja falência empurrou o jovem Alphonse, aos 17 anos,  para o trabalho de vigilante num colégio. Um irmão mais velho, o historiador e escritor Ernest Louis Marie Daudet, levou-o para Paris um ano após, ajudando-o a iniciar uma vida literária, apresentando-o a Goncourt e Emile Zola, dos quais se tornou íntimo.
Ao todo publicou dezassete obras - romances, livros de contos, poemas, dramas - , alcançando o sucesso com "Lettres de Mon Moulin" (1869) e "Tartarin de Tarascon" (1872). No teatro só teve êxito com "L'Arlésienne" (1872).
A ataxia levou-o a viajar para a Argélia, onde se inspirou para criar a personagem do "Tartarin"
A Wikipédia igualmente lhes dirá que Daudet escreveu num estilo "naturalista", na língua provençal ou languedoc, idioma do sul do Loire, entre os Alpes e os Pirinéus.
E que Alphonse Daudet, se encontra sepultado no Cemitério do Père-Lachaise, em Paris, honra que não é atribuída a qualquer gato sapato.
O que não encontrarão na Wikipédia é que Alphonse Daudet foi um simpatizante das ideias socialistas, dos tempos em que os socialistas acreditavam sinceramente no Socialismo e não o escondiam no fundo das gavetas. Enfim, mistérios wikipedianos...
Mas, foram estas concepções sinceramente socialistas que levaram o meu Pai a apaixonar-se por Daudet e a atrair-me a atenção para ele. Meu Pai que, aos 70 anos, deu mais um pequeno passo, aderindo ao marxismo-leninismo, então por conversas continuadas com o filho palrador. Meandrosos são os trilhos da História a nível universal e pessoal... 

Em tempos mui idos já tinha tido a sorte de ler as "Lettres...". Recentemente tive a fortuna de comprar o "Tartarin de Tarascon", numa edição francesa da Flammarion, de 1969, pela pechincha de 1 euro e meio.
Lamento imenso não ser capaz de Vos enviar ( as minhas débeis técnicas computorísticas não dão para tanto)a bela imagem de Tartarin que ilustra a capa do libvro - da artista Françoise Boudignon . E lamento, pois, a imagem figura um Tartarin truculento, entre o grosso e o barrigudo, membrudo (provido de "músculos-duplos" vestido à turca, fez no toutiço, um olho fechado, o outro olho visando um alvo imaginário, bochechas rubicundas, sentado, tendo por cenário nas costas, e no imaginário, uma panóplia de armas onde é possível descortinar cimitarras diversas, punhais vários, krisses malaios, flechas, tomawkes, escopetas diferentes.

 A imagem induz-nos vinte porcento da obra, dado que o Tartarin de Tarascon é um personagem onde convivem duas almas - uma de Don Quixote (o "ingenioso fidalgo de la Mancha) e outra de Sancho Pança - , personagem na qual acaba sempre por triunfar o acomodatício Sancho sobre o intrépido aventureiro Quixote.
Gostaria bastante de Vos traduzir as descrições da casa provinciana de Tartarin, com um embondeiro no jardim da frente à laia de bandeira, dos seus serões a cantar com os amigos, mas , para além das minhas deficiências como tradutor - não melhores que o francês do "monamiterain" -, esta edição do blogue tornar-se-ia interminável, por ventura  maior que a obra de Daudet. Devereis mesmo ler o livro ("é incontornável" como soe palavrar-se hodiernamente).

Não resisto, contudo, a tentar fazer entrar em cena o saboroso pedaço de prosa (pictural, teatral, de ópera buffa?...) no qual Daudet nos descreve Tartarin a visitar um mini-circo que ganha direito ao seu bife exibindo um pequeno grupo de feras em cativeiro. 
"Todos esses intrépidos Tarasconeses, que se passeavam muito tranquilamente defronte das jaulas, sem armas, sem receios, sem mesmo qualquer ideia de perigo, tiveram um movimento de terror bastante natural ao ver o seu grande Tartarin entrar no pavilhão com o seu formidável engenho de guerra (uma espingarda com baioneta). Havia, então, qualquer coisa a temer, pois que ele, este herói... Num abrir e fechar de olhos a parte da frente das jaulas pareceu desprotegida. As crianças gritavam de medo, as senhoras olhavam para a porta. O farmacêutico Bézuquet esgueirou-se, dizendo que ia procurar a sua espingarda (que ele sabia estar nas mãos de Tartarin)...
Entretanto, pouco a pouco, a atitude de Tartarin tranquilizou as coragens. Calmo, a cabeça erguida, o intrépido Tarasconês deu lentamente a volta ao pavilhão, passou sem parar defronte da banheira da foca, lançou um olhar desdenhoso para a longa caixa cheia de som onde a gibóia digeria a sua galinha crua, e veio por fim plantar-se defronte da jaula do leão...
Terrível e solene entre-visão ! O leão de Tarascon e o leão do Atlas em face um do outro... De um lado, Tartarin, em pé, os jarretes tensos, os dois braços apoiados sobre o fusil; do outro, o leão, um leão gigantesco, espojado na palha, olho pestanejante, ar embrutecido, com o enorme focinho de peruca pousado sobre as patas dianteiras... Ambos calmos a olhar-se.
Coisa singular ! quer porque o fusil com baioneta o tenha irritado, quer porque tenha farejado um inimigo da sua raça, o leão, que até ali tinha olhado os Tarasconeses com um ar de soberano desprezo, bocejando para todos, o leão teve imediatamente um movimento de cólera. Primeiro fungou, rosnou surdamente, afastou as garras, esticou as patas; depois levantou-se, ergueu a cabeça, sacudiu a juba, abriu uma guela imensa e atirou um rugido formidável em direcção a Tartarin.
Respondeu-lhe um grito de terror. Tarascon, enlouquecida, precipitou-sue para as portas. Todos, mulheres, crianças, moços de fretes, o valente comandante Bravida, ele mesmo... Só Tartarin de Tarascon não se mexeu... Ficou ali, firme e resoluto, em frente da jaula, com clarões nos olhos e aquele trejeito de desdém nos beiços que toda a cidade conhecia...
Ao fim de um momento, quando os caçadores de gambozinos, um pouco tranquilizados pela sua atitude e pela solidez  das grades, se aproximaram do seu líder, ouviram-no murmurar enquanto olhava o leão: "Isto, sim, isto é uma caça.""

Estareis a questionar-Vos porque fui eu resgatar à poeira das prateleiras literárias esta pérola da literatura gaulesa.
A razão é simples (ou complexa, pois os ocorreres nos neurónios individuais nunca se revelam "simplex"): os meus sobre-aquecidos neurónios associam as personagens Tartarin e Donald Trump. Indagareis ainda, por ventura mais perplexos: como é possível assemelhar duas personalidades tão distintas, de um lado, um inofensivo Tartarin, excessivo apenas na vaidade, do outro Trump, que é o porta-bandeira de uma terceira guerra mundial.
Associo-os pelo lado do truão. Trump nunca passaria de um palhaço de feira, com um vezo machista, não fora o Grande Capital cowboy que o dirige e impulsiona.

A Administração Trump (aliás, ainda não empossada oficialmente) ameaça a China , tentando imiscuir-se na política interna desta, ensaiando deteriorar as relações entre a China Popular e Taiwan, o que, no caso de vir a ser bem sucedida, facilitaria o acesso à Marinha de Guerra dos EUA aos Mares do Sul da China. Tudo isto vai acontecendo perante o alerta da República Popular Chinesa para a perigosidade de tal postura trumpesca ou trampesca.

E das trampas do Trump executo um salto, aparentemente sem nexo, para o filme "Sozinhos em Berlim". Inspirado em acontecimentos reais, o filme narra-nos a história passada durante a segunda guerra mundial, na qual um casal operário, inicialmente apoiante dos hitlerianos, perde um filho na frente Leste. O homem, capataz com uma certa importância numa grande fábrica, considera que o Estado nacional-socialista não prestou honras mínimas à memória do filho e decide encetar uma luta pessoal, denunciando a guerra desumana e anti-patriótica do hitlerianos. A mulher acompanha-o na dor e na actividade de denuncia: vão distribuindo postais em redor dos quartéis-generais da Wehrmacht e da Gestapo, em Berlim.
Os cerca de 287 postais que distribuíram entre 1940 e 1943 constituíram um pesadelo para os quartéis-generais. O casal acabará linchado na guilhotina, mas Otto Quangel, o capataz compreendeu e deu a compreender à companheira, que foi essa luta pessoal que lhes restituiu a dignidade e até o amor sensual entretanto degradado.
Curiosamente o filme é realizado por Vincent Peres e superiormente interpretado por actores ingleses, onde avultam Emma Thompson, Brendan Gloeson, Daniel Brühl.

E, já agora, este filme constitui uma resposta para a peça "Noite da Liberdade", encenada em Almada, no TMJB , na qual se coloca a questão "com quem se faz uma revolução", num debate decerto sério, embora numa perspectiva a tender para o pessimismo. Pois, o filme "Sozinhos em Berlim" responde: é o capitalismo que forja involuntariamente quem resiste à sua brutalidade, à sua desumanidade sem limites ou fronteiras; é do seu ventre que saem os militantes teóricos e práticos de uma nova sociedade onde "os amanhãs podem cantar".

Por hoje fico-me por aqui. Sublinho apenas que no dia em que o norueguês Roald Amudsen atingiu o Polo Antártico com mais três companheiros (14 de Dezembro de 1911), tendo sobrevivido todos - segundo Amudsen, porque souberam manter uma moral elevada e o bom humor - as rádios e televisões nacionais transmitiram todo o santo dia jogos de futebolês das 15 às 21 horas. Espantástico !!! De facto, se Lénine fosse vivo corrigiria a sua famosa fórmula "a religião é o ópio do Povo", substituindo a religião pelo futebolês.

A conselho de um grande declamador, militante activo e grande amigo, Manuel Diogo de sua graça, avisado há mais de um século pelo enorme romancista e humorista Mark Twain , deixarei para próximas núpcias uns acertos de contas finais com o senhor B.de.C. , actualmente presidente do Sporting Clube de Portugal, clube honrado, ao qual o desporto e a cultura nacional tanto devem. 

   
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Saudações confiantes

do Leopardo

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