Reflexões do Leopardo

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domingo, 22 de maio de 2016

Requiens, Questionamentos e Diálogo - Partitura I

Confesso que fui surpreendido, a edição anterior do blogue desencadeou uma verdadeira explosão de comentários, um Vesúvio em erupção: dez, dez, 10 !, quase tantas como as visualizações! É bem verdade que esses comentários provinham de duas/três cabeças a escaldar. Em todo o caso é um extraordinário que merece registo.
Por outro lado confesso igualmente que este Leopardo, que se imagina a dirigir-se ao supra-sumo da intelectualidade artística e literária da cultura portuguesa, ficou um um pouco surpreso com a natureza miúda, mesmo brejeirota, das interrogações ou curiosidades esboçadas: "nas afectuosidades entre o Mozart e a mana Nannerl havia suspeitas de incesto?; o Mozart e a esposa legítima atraiçoavam-se mutuamente? etcetera, etcetera.
Confesso que esperava mais elevação, outro nível de questionamentos, mais elegância da parte de intelectualidade tão subida. Mas, a natureza é o que é, o sangue que nos corre nas veias e as descargas eléctricas que saltam nas sinapses do nosso córtex cerebral, no essencial, não diferem das do Zé Povinho. E ainda óptimo, senão como se faria o diálogo?!...

Então, nesta Partitura I, vamos ao Mozart que é o que promete mais pasto para essas "curiosità".
Primeiros, o Joannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart, nome de baptismo, nasceu em Salzburgo, cidade que, então (27.Jan.1756), pertencia à Áustria, sendo, portanto, austríaco e não "tedesco" como vulgarmente se supõe. O próprio Mozart, por razões de sobrevivência financeira, fez questão de acentuar uma suposta veia "tedesca", pois era um irreprimível perdulário e as autênticas fortunas que foi ganhando eram sempre inferiores às dívidas contraídas - em palacetes, carruagens, "valets de chambre/cocheiros", acima das suas posses.

Repararam naquele "Chrysostomus", termo grego que significa "boca de ouro" e  no "Theophilus" , termo igualmente grego significando "amigo ou amado de deus". Um espertalhão, o pai de Mozart - Leopold Mozart - que, ao contrário do que é habitualmente concebido, não foi apenas um explorador do talento genial do filho, mas foi também um excelente professor dele, abdicando de uma carreira pessoal, para se dedicar a proporcionar-lhe uma educação de luxo e uma carreira de sucesso. Tê-lo-à feito estudar - além da música clássica, naturalmente - francês, italiano, latim, aritmética e exercícios físicos ao ar livre ( uma novidade absoluta). Também, nas constantes digressões que fizeram pela Europa, algumas das cidades onde se exibiam - e das quais retiravam o seu sustento - foram escolhidas por oferecerem a possibilidade de o jovem génio conviver com músicos famosos.

Sim, Leopold Mozart foi um violinista famoso que, inclusive, escreveu um tratado sobre como tocar violino, que fez época, e que permanece como obra de referência onde se espelham as concepções musicais do seu tempo.
Leopold, que subordinava o exercício da música a uma pedagogia religiosa austera, impôs aos filhos - Maria Anna, a Nannerl, e a J.C.W.T.Mozart uma disciplina de trabalho diário pesada, da qual ambos bastante beneficiaram pela vida fora. Nos seus breves 35 anos de existência, Wolfgang Amadeus Mozart com frequência laborava horas a fio, barafundava as horas das refeições, o que é uma parte da explicação para as cerca de 600 obras que compôs - sinfonias, concertos, óperas, corais, músicas para piano e câmera - , não se excluindo ainda hoje a possibilidade de aparecerem partituras caídas em mãos de particulares que as pretendam fazer render. 

Amadeus Mozart foi o 7º e último filho de Leopold Mozart e de AnnaMaria Pertl. Só Nannerl e ele sobreviveram. A mortalidade infantil era uma verdadeira hecatombe na época, alguns dos recém-nascidos não durando mais que poucas horas, dias ou meses.
As famílias conviviam horas seguidas na mesma sala e, no caso dos Mozart, era habitual misturarem uma linguagem cuidada com um "gèrgo" caseiro, grosseiro, que, tratado pelo génio irreverente de Amadeus , explica que encontremos entre as numerosas cartas lacradas, enviadas à mana Nannerl, a ternurenta confissão de que adorava os peidinhos que ela soltava enquanto dormia. Portanto, muito provavelmente, não verdadeiro incesto, apenas a revelação de uma intimidade intensamente... odorífera.
Aliás, Amadeus Mozart inscreve-se no número dos grandes epistológrafos do tempo (em que não existia Internet, nem telefones celulares...), conservando-se 1.600 destas cartas, assaz bem redigidas.

Em 1761 - tinha Amadeus Mozart 5 anos - o pai apresentou-o na Universidade de Salzburg como menino-prodígio. Aos 7 anos, o menino-prodígio tocava cravo ou piano sem olhar as partituras, com o teclado oculto por um pano negro. E durante 20 anos Leopold exibiu o filho na Alemanha, França, Inglaterra, Países Baixos, Suiça.

W.A.Mozart tocou para Luís XV em Versalhes, para Jorge III em Londres - onde conheceu e ficou amigo do músico prestigiado Johann Christian Bach, neto ou bisneto do lendário Johann Sebastian Bach, - que um bar perto do Príncipe Real e do Bairro Alto, em Lisboa adoptou como nome para atrair os noctívagos da zona, amantes de jazz... o que prova mais uma vez que o mundo é... circular - o das "fugas", dos "Concertos de Brandenburg", da "Paixão segundo São Mateus" - peça musical central num filme, "Il vangelo secondo Matteo" de Pier Paolo Pasolini - Bach mestre do contraponto e da música Barroca, Bach do qual toda a música ocidental se considera tributária e herdeira.
Nas deambulações musicó-financeiras de 1765 (tinha 9 anos) terá ganho de lucro cerca de 10 mil dólares actuais - boa parte deles da Maria Antonieta que virá a ser guilhotinada cinco anos após, aquando da grande Revolução Francesa (equiparável na grandeza e consequências à enormíssima Revolução Soviética de 1917) - para além de anéis de ouro, relógios, caixas de rapé, jóias de valor incalculável.

Todavia, estas digressões venatórias - à caça de fortuna, fama, arte, amigos, apoios - tinham igualmente os seus custos e os dois irmãos, A. Mozart e Nannerl , apanharam febre tifóide, que não os matou mas os deixou convalescentes durante meses e a sofrer de febres reumáticas para o resto da vida. Apanharam igualmente uma forma suave de varíola, que marcou para sempre o rosto de Amadeus com uma série de pequenas crateras que tentava disfarçar com "maquillage".
Em Dezembro de 1769, então só ele - com 13 anos - e o pai viajam para Itália (na verdade, os diversos Estados da península itálica): Verona, Mântua, Milão, Bolonha, Florença, Roma.
Em Bolonha conhece o "castrato" Farinelli, no auge da fama, sobre o qual também já foi realizado um filme. Em Roma, Amadeus e Leopold foram recebidos pelo Papa e o adolescente prodígio foi agraciado como "cavaleiro"- o que era invulgar para um músico. Aos dois, pai e filho, sem quaisquer folhas de apontamentos, foi-lhes permitido ouvir o "Miserere" de G. Allegri, na Capela Sistina, com um número de presenças limitado ao essencial para não se correr o risco de a música poder ser transcrita. Regressados ao hotel onde estavam hospedados, perante a estupefacção do pai, o jovem Mozart transcreveu o "Miserere" ouvido, de memória, na íntegra, sem uma falha, sem um erro...

É sensivelmente a partir desta data que começam a suceder os grandes feitos musicais de Amadeus Mozart e as suas aventuras amorosó-eróticas. Com 14 anos terá tido a sua iniciação sexual com uma prima. Em 1771, ele e o pai regressam a Milão. Em 1780, é encomendada a A.Mozart (com 24 anos) uma Ópera, que desembocará no "Idomeneo". Em 1781, renova o seu romance com Aloysia Weber , a qual trocará pela irmã Constanze Weber com quem anunciará o casamento (na Catedral de Santo Estevão, a 4.Agosto.1782), após a estreia e o grande sucesso da Ópera "O Rapto do Serralho". Leopold não terá aprovado o casamento com Constanze, porém, posteriormente, terá apreciado que fosse ela a gerir a fortuna do casal, pois Amadeus era um estabanado a gastar o que ganhava, envolvia-se em altercações constantes com os mecenas que o contratavam, mostrava-se sempre demasiado cônscio do seu valor, evitando exibir-se para públicos musicalmente ignorantes, ou, por exemplo, recusando comer à mesa com os serviçais (como era hábito na época), ou, contraditoriamente na aparência, deslocando-se para os bairros mais populares da cidade, dando igual importância à Ópera "buffa" (onde a criadagem, os arlequins, as colombinas,  as zerlinas, eram os heróis) e à Ópera "séria" (das grandes encenações, dos deuses, dos imperadores, dos reis e rainhas).  

Rezam as crónicas oficiais que Amadeus Mozart e Constanze Weber foram muito felizes e não existem provas concretas de que Constanze tenha sido infiel.  Sobre a felicidade não me pronuncio por ser matéria mui volátil, todavia a infidelidade conjugal de Mozart é quase certa e quanto à infidelidade de Constanze  sou mui propênsico a acreditar nela.
Assim, o primeiro filho de ambos teve pouco tempo de vida. Em 1784, nasceu um segundo filho, Carl Thomas, um dos poucos que sobreviveu. Foi nesse ano que ingressou na Maçonaria, organização filosoficó-política secreta, de carácter progressista, que concebia um deus-geómetra, orientado para o Bem e a Felicidade do Universo.
Em 1785, compõe a Ópera "As Bodas de Fígaro" com libreto de Lorenzo da Ponte. Em Outubro desse ano nasce um terceiro filho que dura poucos dias.

Em 1787 é convidado para ir a Praga, compõe a Ópera "Don Giovanni" - onde uma série de críticos da especialidade vêem um ajuste de contas com a figura paterna, a resolução do complexo de Édipo. Nesse mesmo ano morre o pai. Mozart renuncia à herança a favor de Nannerl, apenas pedindo em troca todas as partituras que tinha composto. Nesse mesmo ano nasceu-lhe uma filha que viveu poucos meses.
É possível que por essa altura tenha dado aulas a Ludwig van Beethoven, que teria uns 17 anos. Mozart, na generalidade dos casos não gostava de dar estas aulas privadas, mas precisava delas para manter o equilíbrio sempre instável das suas finanças.

Em 1789 - ano do início da Revolução Francesa, Amadeus tem 33 anos e viverá mais 2 anos - nasce uma filha ao casal Mozart, filha que vive só um dia.
No Verão de 1791, Mozart está na Alemanha, com as esperanças colocadas no novo imperador Leopoldo II, que supõe um "iluminista". Nasce-lhe o último filho, Franz Xaver Wolfgang - que sobrevive! ; ou seja, em 6 dos  filhos recém-nascidos sobreviveram 2 ... 
Mozart compõe a Ópera "a Flauta Mágica, que se popularizou rapidamente.
Recebe a encomenda de um Requiem, supõe-se que através do músico e compositor Salieri, impondo a condição de a missa fúnebre vir anónima, mas acompanhadas de pagamento generoso e antecipado. Hoje, está apurado que a encomenda provinha do conde Walsegg-Stupach , que a pretendia anónima para depois a apresentar como sua, em memória da esposa (estas encomendas aos denominados "escritores negros" ou "cinzentos" prolifera ainda hoje e ainda em muito maior escala por parte das entidades mais diversas).
Amadeus Mozart, enquanto acaba a composição da última Ópera "A Clemência de Tito", estreada com muito aplauso em Praga, parece que terá ficado obcecado pela encomenda e as condições da encomenda do "Requiem" , para o que pode ter contribuído o agravamento da febre reumática de que sofria.

Infelizmente, o filme que ganhou notoriedade sobre a vida "do amado dos deuses" fez-se porta-voz de uma série de suposições com pouco suporte na base documental e transmitiu a personagem de um Salieri-músico medíocre, invejoso, perverso até ao isolamento e assassínio de Mozart. Ora, essa imagem não corresponde nada aos factos. Salieri, sem se destacar como um génio, foi um músico de sucesso, admirador de Mozart , que talvez tenha estado presente no enterro de Amadeus, juntamente com um dos alunos e dois músicos (habitualmente, os músicos, por muito geniais que pudessem sê-lo, não levavam acompanhamento maior do que este). Mozart foi enterrado no dia 5 de Dezembro.1791, no cemitério da Igreja de São Marx, nos arredores de Viena. E cinco dias depois, a 10 de Dezembro, os maçons rezaram-lhe uma missa sumptuosa e os obituários reconheceram-lhe a grandeza musical. Em Praga, as homenagens foram ainda mais grandiosas.

O "Requiem" ficou incompleto, mas esboçado na generalidade. Alunos de Mozart, Joseph Eybler e Franz Süssmayr , completaram-no de acordo com os rascunhos do Mestre.

Wolfgang Amadeus Mozart deixou uma herança considerável em manuscritos, instrumentos, objectos diversos, mas bastante mal avaliada em termos financeiros.

A influência musical "do amado dos deuses" é óbvia e reconhecida em Ludwig van Beethoven, Franz Schubert, Gioacchino Rossini, Robert Schubert, Johannes Brahms, Richard Wagner, Anton Bruckner, Piotr Tchaikovsky, Gustav Mahler, Max Reger, Richard Strauss, Ygor Stravinsky, Arnold Schönberg, John Cage, Michael Nyman, etecetera, etecetera.

Os especialistas não o consideram  um músico revolucionário, na medida em que a sua música não provoca um movimento de fractura com o passado, inaugurando formas musicais novas, mas afirmam a sua grandeza na complexidade, amplitude e profundidade que confere às convenções musicais que chegaram até ele, sobrepondo-se a todos os contemporâneos.

Aqui o Leopardo, que não se presume de forma nenhuma de especialista, que se auto-avalia como um mero amador, julga a música de Amadeus Mozart inegável numa leveza aparente, numa simplicidade divina, numa alegria sem limites. Mesmo pondo entre aspas a genialidade da criatura, a mim sempre me dá a impressão que seriam necessárias três vidas de um homem superior para viver a vida de Wolfgang Amadeus Mozart.



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Amplexos momentaneamente tranquilizados,

sempre confiantes,

do Leopardo

  
                

         

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