Na edição anterior do blog falámos do mito de "Ephigénie en Tauride" e da sua interpretação em Ópera no espectáculo do Teatro São Carlos.
Fiquei depois a pensar que convém ainda precisar alguns pontos. Os Mitos constituem-se a partir das vivências comuns e assumidas de Povos. Representam a história e as imagens de como os Povos se vêem ou vêem aspectos particulares das suas vivências. Os Povos que elaboram os Mitos não os tomam por "representações", mas pela própria realidade em si. Os Mitos supõem sempre a relação entre os seres humanos e entidades superiores que designam de "deuses", deuses que são considerados como formas de "Ser" absolutamente reais, deuses que indicam, ou determinam, aos humanos um destino, isto é, uma forma específica de existir.
Talvez seja melhor dar uns exemplos.
Jeová resolveu comunicar aos homens as suas leis. Gravou-as numas pedras, as Tábuas da Lei. Escolheu um "Povo Eleito", os Hebreus. Para acentuar bem a diferença de escala não as transmitiu directamente, entregou-as a um mensageiro graduado, Moisés, no alto de uma montanha (o Monte Sinai), mensageiro graduado esse que por sua vez as retransmitiu ao Povo Eleito. As leis não eram muitas, apenas 10 - que a pachorra dos humanos daquelas épocas era tão curta como a dos frequentadores actuais do facebook. Curiosamente, a primeira lei esculpida foi : "Amarás o Senhor teu Deus acima de todas as coisas" (mesmo os augustos suseranos não dispensam uma boa publicidadesinha de técnicos).
Decerto, não passará a nenhum de nós pela cabeça, no meio de uma sinagoga, contestar que este mito seja a própria e concreta realidade... No mínimo seremos postos na rua à paulada, ou lapidados se houver pedras da calçada soltas (Que nenhum de nós é o Woody Allen, que é do clube do "Povo Eleito" e se nos farta de fazer rir no cinema).
Outro exemplo. O Deus cristão revelou a Abraão - o Pai de todos os Profetas - que viria um "Messias" (não o das Caves) com uma nova mensagem (a qual, segundo os especialistas, só aparece cento e tal anos depois da data que é uso ser-lhe atribuída). A nova mensagem, Evangelho ("Boas Novas") viria nas palavras de um Jesus Cristo, seu filho (Cristo, deriva do termo grego Christós, que significa "messias", ou seja, o Ungido, o Consagrado, o Libertador). Este Filho, formaria com o Pai e o Espírito Santo - representado por uma pomba branca (não por um Banco) - uma trindade divina.
Também não passará pelo bestunto de cada um de nós, em plena celebração da missa, quando o sacerdote - outro delegado do Divino muitos patamares mais abaixo - bebe o cálice de Porto ou dá as hóstias aos comungantes, colocar interrogações sobre o mistério da Trindade, a veracidade do corpo de Deus na hóstia, o medo de Cristo no "Horto das Oliveiras" ou a fiabilidade dos "Manuscritos do Mar Morto".
Nesta altura da reflexão é irrelevante mencionar os pelotões de "messias" que brotam em várias religiões, em diferentes regiões do globo, em diversas línguas.
Os Japoneses ligados à filosofia Zen frequentemente colocam os poderes superiores na Natureza e no alto das montanhas.
O Hindús defendendo a concentração no Nada, vão figurando a imagem de um senhor gordo, - que denominam de Buda - sentado, de olhos cerrados, sorriso beatífico, no fundo de uma gruta ou no côncavo de uma árvore. Ou figuram na deusa Shiva - um elefante branco, fusão de um corpo de mulher de pernas delicadamente cruzadas e múltiplas trombas, o todo no dorso de um rato - ou nas vacas, ou no rio Ganges que desagua imundo no Oceano.
Todas estas concepções - mui sinteticamente resumidas - não se tomam a si mesmas como "representações", como metáforas da realidade, mas como a própria realidade. E todas elas recorrem a rituais - "ritos" - dessa realidade, ritos que outra coisa não pretendem ser que cerimónias sagradas, nas quais se revive a realidade em si mesma.
Ou seja, os"ritos" não pretendem ser "representações", mas, sim, cerimónias nas quais se reestabelece a ligação entre o humano e o divino.
Os rituais exigem na sua celebração vestuário que indica os vários patamares escalonados entre o "ser" do humano e o "ser" do divino, uma ordem processual determinada na celebração, música adequada segundo o momento da celebração, declamações de textos escolhidos segundo esses momentos, trechos cantados para cada momento.
Por outras palavras, os "ritos"figuram o Real através de uma acção, um drama, em moldes que podem sofrer pequenas variações dentro de um quadro fixo. Os "Ritos" tornam as concepções teológicas "sensíveis", intuíveis através dos sentidos (visão, audição, olfacto, tacto, paladar) , e não só através da luz fria da razão dos teólogos. Portanto, os "Ritos" reforçam a força social dos "Mitos".
A que propósito vem esta conversata? A propósito da tomada de posse do novo Presidente da República, o professor Marcelo Rebelo de Sousa, o qual os aleivosos do costume designam de profe Martelo (que o profe Martelo "toujours" a abanar as mãos para a direita e a esquerda, toujours em delínquos de olhos e esgares de sorrisos, e patatí patatá, finaliza sempre a defender as cores do PSD...).
Ora, o recém empossado Professor Doutor Marcelo está de facto a procurar fundar uma nova mitologia. Uma mitologia centrada na sua pessoa. Que a chegada a pé ao Palácio de Belém, casaco pelas costas, seguido de uma mão-cheiinha de populares aturdidos, depois de ter fintado a comitiva oficial e o batalhão de seguranças. Que a troca da coroa, perdão, do cadeirão de pretendente pelo Cadeirão Presidencial. Que o deslumbrante - quiçá divino - discurso da Posse. Que alguns abraços completamente fora do protocolo, Inauguram uma Democracia "Liberal" Nova, "Aberta", uma Presidência de "Afectos", de "Emoções, uma Presidência "Transversal", Equidistante dos partidos e de todos os outros polos de poder do planeta.
E todos os "mírdia" dominantes, em coro ou em polifonia, louvaminharam à uma a excelência excelentíssima da peroração, a sua capacidade inventiva, modernidade, isenção irreprensível. E como tinham sido exacráveis os partidos "radicais", encostados à parede!, (ou seria ao muro?) - PCP, CDU, Verdes, Bloco (até estes útimos!... persignemo-nos, irmãos) - não batendo umas palmas no términus do peroramento ... pelo menos umas modestas palmas de cortesia!...
Porém, a cereja no topo do bolo foi a Festa, a Festa, à noite, na Praça do Comércio, com tutti quanti é gente na Pátria, ajuntados e até misturados ao povoléu miudíssimo, todos capitaneados - mas imformalmente, informalmente... - pelo recém e luzidio Presidente, envolto numa vulgar gabardine acolchoada da Ermenegildo Zegna (trapito acima dos 2.500 eurios) e uma mantinha de boa lã da Emporio Armani (coisa também upa, upa) - que os canelos de um Presidente enregelam como os de qualquer plebeu - e um boné, um boné talvez comprado nos chineses (Oh céus, que alentejanisse, mas a "transversalidade" oblige!). E todos, mas todos, com o "seu" Presidente, a bater o pézinho, o calcanhar, a cantarolar, a catrabombear palmas à nascente estrela das cantorias Anselmo Ralph, à persistente estrela dos cantautores Cid (com aquele imaginativo tecto de colmo que usa por cabeleira), à Mariza eternamente em busca do seu reportório e de florir como a Dona Amália II, à Dona Simone, que já não abre a goela de todo, e transita, sempre fiel a si mesma, do locutor-namoradinho do salazarismo, para o PS, óspois para o PSD/PÁF e na hodiernidade para o marcelismo, todos a bater muitas palmas, muitas, ao Abrunhosa - que magicou e dedicou uma canção ao seu-amigo-pessoal-Senhor-Professor-Presidente (não, não foi "o talvez fod.r") - ao Paulo de Carvalho às curvas pr'à Esquerda, pr'à Direita e toujours, toujours um cantor da banda da Esquerda.
O que é necessário esclarecer é o limiar entre o Mito e o Espectáculo.
O Mito vai-se formando inconsciente de si mesmo, correspondendo a problemas fulcrais de uma sociedade, de uma época e de uma ou várias culturas. Quando o Mito passa à cena, passa a Espectáculo, é sinal que ganhou ressonância social, começou a ganhar consciência de si, começou a questionar-se, procurando significados.
O caminho inverso, o Espectáculo que conscientemente procura promover-se a Mito, é um produto cozinhado com mais ou menos astúcia, porém ao qual falta o húmus social que o alimenta, é um produto contra-natura, sem ressonância social, que com a mesma rapidez com que foi erguido se escoa pelo justo buraco negro do lixo universal.
Prevejo que o lixo marcelista se escoe pelo supra-mencionado buraco negro e tudo farei para lhe dar um empurrãozinho.
Amplexos amistosos quanto baste
não vá eu ainda ser convidado par a comitiva presidencial marcelista
pelo menos do enxovalho nem um Leopardo se livra.
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