Reflexões do Leopardo

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sexta-feira, 11 de março de 2016

" "Ephigénie en Tauride", o trilema do Crime, Castigo, Perdão"

Esta edição do blog versará sobre a última ópera que o São Carlos levou à cena, ópera que se constrói sobre um mito grego com cerca de 3.000 anos, que habitualmente dá pelo nome de "Ephigénie en Tauride" .

Provavelmente a primeira questão que colocarão é :  o que é que nos interessa a nós, humanos do século XXI, das viagens no espaço, das estações espaciais, das comunicações quase instantâneas (à escala temporal humana), das armas nucleares que podem destruir o planeta em que habitamos, das transmissões de imagens que nos revelamos os sítios mais recônditos da Terra, o que nos interessam histórias, lendas, mitos de tempos em que os meios de transporte mais velozes eram o cavalo, o camelo, a canoa, as jangadas, a nau a remos ou à vela? Tempos nos quais as mensagens eram transportadas nesses meios em peles de animais curtidas?
Refreemos a nossa impaciência histórica. Dará que pensar que por alguma razão, as sociedades de todos os séculos, retornem aos mitos para os reexaminar, reinterpretar, descobrir/inventar novos sentidos. Citarei apenas três mais próximos da nossa cultura europeia: o mito de "Orfeu e Euridice", o mito de Aquiles e da sua vulnerabilidade humana apenas no calcanhar, o mito de Narciso apaixonado por si mesmo, o que será a causa da sua morte.

O mito de Ifigénia apresenta umas variantes - sobretudo no seu final - umas mais trágicas, outras mais optimistas, porém, no seu cerne é sensivelmente o que se segue:
Ifigénia é uma das filhas de Agamémnon - o poderoso rei grego que comanda a expedição contra Tróia - e de Clitemenestra.  Agamémnon provoca a cólera de Ártemis - deusa das florestas, dos bosques e de todos os animais que lá vivem (hoje seria a deusa dos partidos ecologistas e do PAN...). Consultado o adivinho Calcas, este responde que a cólera da deusa só pode ser aplacada se a filha de Agamémnon, Ifigénia, for sacrificada.
Primeiramente Agamémnon recusa - os Gregos/Helenos eram adversos aos sacrifícios humanos, que consideravam práticas bárbaras, só próprias de não-helenos; era em princípios destes, na sua organização política e na língua grega - língua mais racional,  mais estruturada e sistematizada - que baseavam o juízo da sua superioridade sobre os outros povos... e o seu direito a "civilizá-los"... Nada que não se encontre facilmente na contemporaneidade...
Todavia, Agamémnon, pressionado pelo rei Menelau (seu irmão) e por Ulisses - o das mil artimanhas -, rei da ilha de Ítaca (supostamente um dos fundadores de Lisboa, donde derivaria o seu nome - "Ulissabona"), cede. 
Ifigénia está no altar, prestes a ser sacrificada, mas, no derradeiro momento, a deusa tem piedade e substitui-a por uma corça.
Em troca, Ártemis ( que também dá pelo nome de Diana, noutra versões) leva Ifigénia para Táurica (actual Crimeia) fazendo dela sua sacerdotisa.
Na Táurica, a missão de Ifigénia é sacrificar todos os estrangeiros que vão chegando em consequência de naufrágios, independentemente do que tivessem feito antes. Não, não comecem já a associar aos refugiados da Síria e do norte de África, suas cabecinhas subversivas... Não tem mesmo nada a ver, pois nããão?!... 
Ifigénia vai degolando os náufragos com eficácia (hoje dir-se-ia com "produtividade"), embora sempre dividida numa tensão contraditória entre o dever de obedecer à deusa (hodiernamente, o dever de defender os interesses do "boss" ou da empresa) e o remorso de assassinar seres humanos. Ifigénia vai executando as ordens superiores (divinas), até ao dia em que lhe trazem Orestes - seu irmão - e Pílades, companheiro de armas do mano.
Ora, Orestes é portador  de um drama íntimo igualmente fracturante: ele matou a mãe para vingar a honra do pai, Agamémnon, pois Clitmenestra atraiçoava o pai com um amante, mas não consegue cancelar os remorsos de ter morto a própria mãe e infringido os deveres filais.
Por seu lado, Pílades está incumbido de roubar a estatueta da deusa Ártemis (não me recordo porque bulas, talvez para poder ter um meio de chantagem e aplacar a cólera da deusa contra os navios helenos, parados no mar por uma calmaria dos ventos).
Ártemis, ao saber que Ifigénia é irmã de Orestes, oferece-lhe a possibilidade de salvar a vida do irmão, porém, em seu lugar, Pílades deve ser sacrificado, isto é, degolado.
Novamente o drama se complica, pois Orestes quer ser morto para não continuar a viver com os seus remorsos insanáveis, e Pílades também quer morrer para que a sua memória não sofra o opróbio da cobardia, por não ter tido a coragem de ser degolado para salvar o amigo.

Poupo-os a mais umas peripécias rocambolescas, nas quais mais um membro da família de Ifigénia, Thoas, irmão mais velho, um Tirano, muito dado a degolações em que se besunta de sangue, também é morto. Depois de muito oscilar entre deveres contrários e remorsos excruciantes, Ifigénia atraiçoa a deusa, foge com Orestes e o amigo, entregando-lhes a estatueta de Ártemis.

Contei-lhes o mito numa toada um tanto de paródia - contudo, se folhearem os diversos correios.da.manhã da imprensa portuguesa (e estrangeira) episódios que não encontram explicação à luz de uma razão fria, e tão sanguinolentos como os do mito, são fáceis de topar - não obstante, por baixo do "fait-divers" dos episódios míticos, as questões subjacentes são sérias e continuam actuais (daí, a sobrevivência dos mitos). Ou seja:

Os crimes implicam castigos sociais e morais. Seria inadmissível que os não tivessem. Deixariam de ser crimes. Desapareceria a fronteira entre o que é lícito e o que é ilícito, social e moralmente.
Mas, inevitavelmente, cresce o sentimento e a ideia do perdão, da piedade. Será que o julgamento foi justo? Será que o castigo não foi excessivo? Será que o criminoso não poderá ser sinceramente recuperado para uma ordem social e moral superior? E quem possui a estatura social e ética para julgamentos tão difíceis de ponderar?
Depois, é fácil afirmar que aderimos à ordem ética superior do perdão - por exemplo, não interessa para nada a um marxista-leninista a eliminação física dos detentores do Grande Capital, interessa sim, retirar-lhes a posse de determinarem a economia, da qual dependem a arrumação social, as forças armadas e o poder ideológico - mas, quando a desgraça nos toca pela porta e perdemos o pai, a mãe, irmãos/ãs, quem é capaz de garantir com confiança que espera pela justiça social e não resolve tomá-la em suas próprias mãos pessoais?
Isto é, os mitos não morrem enquanto ecoarem nas nossas consciências.   

A Ópera de Christoph Willibald Gluck (1714- 1787; morre dois anos antes do início da Revolução Francesa...) - que realiza a síntese dos estilos operáticos italianos, franceses e vienenses - ergue com enorme sensibilidade esta problemática, num cromatismo musical de paradigma.

Os cantores principais que a interpretam (muitos de nacionalidade canadiana) servem-na de forma criativa. Eles e todos os outros cantores, coro, maestro do coro, maestro, orquestra, cenógrafos (óptimos), desenho de luzes, figurinistas, corpo de baile e figuração, ofereceram-nos um dos melhores espectáculos de Ópera dos últimos anos.
Salientarei apenas Alexandra Deshorties (Iphigénie), enorme cantora e actriz (enorme também na altura e cantou sempre descalça), com uma bela figura no palco, que nos dá todas as "nuances"da personagem e nos arrebata. Muitas das palmas da noite foram-lhe dirigidas. William Berger, barítono, não fica atrás da Deshorties quer na representação quer no canto.
Os outros cantores que me desculpem, porém não tenho as 128 páginas do programa para os referir, embora merecessem. 
Destacarei ainda as cantoras portuguesas Sónia Alcobaça (Primeira sacerdotisa) e Maria Luísa Tavares (Segunda sacerdotisa) que são estrelas da cena lírica portuguesa de créditos consolidados.
E, volto mais uma vez à carga, existem bons profissionais da cena lírica portuguesa que justificam a existência de uma companhia residente no São Carlos (pela qual tanto se bateu João de Freitas Branco). Que não passemos pelo crime cultural de vender, seja a que privados for, a única casa, actualmente existente, exclusivamente concebida para as obras líricas, "i drammi per musica". Que não fiquemos confinados aos espectáculos "populares" da Praça do Município ou aos jardins do Palácio de Belém com o primeiro-ministro e o recém empossado PR a assistir e bater o pé (aliás, o recém empossado PR era presença habitual no São Carlos; será que o seu novo figurino popularucho   não se ajusta à sua presidência "tansversal" de "emoções"?...). 





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Amigos, despeço-me com muitos acordes... espaçados por silêncios

As garras impedem-me de tocar violoncelo (que seria o meu instrumento)

O Leopardo

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