Tenho dificuldade em escrever sucintamente sobre Verdi: porque é o meu compositor de Ópera favorito; porque me esforço por saber alguma coisa de Música considerando, porém, que os meus conhecimentos de amador são parcos para fazer uma síntese adequada em poucas palavras (a simplicidade só está ao alcance dos Grandes); porque , com toda a carga de subjectividade que uma adesão destas comporta, " a Messa da Requiem" de Verdi constitui uma obra-prima da qual sobressai uma visão trágica da condição humana, cuja intensidade jamais foi ultrapassada" (estou a citar o grande compositor, maestro e músico Alexandre Delgado, que por sua vez cita Jacques Bourgeois) ; porque, por razões pessoais e familiares, sempre que ouço o Requiem de Verdi, acabo esmagado, reduzido a uma cinza de meteorito extinto, perdida na negra noite do espaço sideral.
A "Messa da Requiem" é tanto mais extraordinária quanto sabemos que ela se constrói em torno de uma interrogação sobre a Morte e quanto sabemos que ela parte de um ateu, Verdi, de um ateu anticlerical, que a produz para celebrar outro ateu, Alessandro Manzoni.
Uma viagem mesmo rápida pelo percurso desta obra, mesmo pela mão deste guia, é bastante elucidativa da condição humana, pelos preconceitos que a constituem, pelo labor entusiástico e confiante para os "surmonter".
Alessandro Manzoni, autor do romance "I promessi sposi" ("Os Noivos"), emergia como o herói literário da Itália unificada. Morreu subitamente em 1873 - 6 anos antes da explosão fenomenal da Revolução Francesa - e Verdi, amigo pessoal e admirador de Manzoni, pensava "com ele foi a mais pura, a mais sagrada, a mais elevada das nossas glórias".
Verdi propôs-se dedicar uma Ópera de defuntos a Manzoni, para ser estreada um ano depois da morte do escritor, em Milão, cidade natal do romancista. Verdi pensava compor a Missa em parceria com outros músicos célebres na época. Todavia, por uma razão ou por outra, muitas delas provenientes directa ou indirectamente da Igreja Romana que não morria de amores por Manzoni nem por Verdi, este último acabou por se encontrar sózinho na execução do projecto.
A Igreja Romana, que acabava de ver reduzido o seu Estado, Roma, ao Vaticano, ia envenenando a imprensa com noticiário necrológico a denegrir encobertamente Manzoni. Tudo lhe serviu de pretexto para desmoralizar e demolir a "Messa da Requiem" de Verdi: a escolha da igreja, o número dos solistas - 4 solistas (uma soprano, uma mezzosoprano, um tenor, um baixo) era inusitado e convertia de facto o Requiem numa Ópera, mais própria para ser representada num palco operático -, a participação das mulheres a cantar no Requiem, o vestuário das mulheres solistas e das mulheres no Coro (só consentido vestidas com túnicas negras do pescoço aos pés e a cabeça, de cabelos apanhados, envolta em longos véus negros - equivalentes às burkas contemporâneas), a instalação de degraus em diferentes planos que pudessem sugerir um palco de ópera.
No auge da celebridade, com 70 anos, "finiti gli anni di galera", esse era um luxo que Verdi podia permitir-se: compor exactamente o que queria e não o que lhe era encomendado. E já não era igualmente fácil ao Vaticano opor um simples "Não" ao que era considerado o maior compositor de Óperas italiano, que tinha estreado o "Rigoletto" (1851), o "Il Trovatore" e "La Traviata" (1853), "Simon Boccanegra" (1857), "Macbeth" (1865), "Aida" (1871), entre outras obras maiores da Ópera (28 ao todo) a nível mundial.
Verdi discutiu, negociou, regateou com o Vaticano ou os seus intermediários tudo até ao mais ínfimo pormenor.
A escolha da igreja acabou por recair na Igreja de San Marco, cujas fundações tinham sido lançadas nos séculos XII e XIII, na periferia da muralha da Milão medieval, mas que Giuseppe Verdi preferia quer pela acústica, quer pela arquitectura, verdadeiro "bosque de pedra" envolvente.
As mulheres solistas e as do Coro vieram a vestir drapejamentos a preto e branco e verificou-se que a maioria delas, por baixo dos véus, eram jovens e belas.
Na realidade, os/as cantores/as intérpretes foram distribuídos por estrados a diferentes alturas, o que os transformava em palcos.
O maestro, o próprio Verdi, por essa altura Senador do Estado Italiano unificado, conseguiu muito mais do que os 10 dias iniciais concedidos para ensaiar com as solistas, dentro de San Marco, acompanhado ao piano.
Verdi era conhecido pela sua exigência como Maestro, exigindo impossíveis aos seus cantores, abreviando-lhes por vezes a carreira ao exigir-lhes que ultrapassassem os limites das suas próprias vozes. O que fez também com a sua companheira e mulher da vida inteira, a "diva" Giuseppina Strepponi que sempre o apoiou e defendeu (Verdi sobreviveu-lhe apenas quatro anos e zelou para que ficassem sepultados lado a lado, no mesmo jazigo...).
Verdi, conhecido igualmente por impor a sua vontade, menosprezando conselhos em sentido contrário. Como sucedeu, por exemplo, com o famoso "ritornello" "la donna é mobile qual piuma al vento", retirado de uma cançoneta popular, que todos os conselheiros lhe afirmavam não estar à altura musical da obra do mestre. Verdi manteve o "ritornello", que se tornou o emblema do "Rigoletto". Tinha portanto razão o Mestre (num apanhado sucinto, o "ritornello" já foi cantado por Caruso, Pavarotti, Alfredo Kraus, José Carreras, Plácido Domingo...).
O Vaticano ripostou com uma missa "a secco", na qual não foram dadas hóstias dentro da igreja aos comungantes.
A controvérsia sobre a "Messa da Requiem" prolongou-se muito para lá da sua estreia com ataques furiosos dos "paus mandados" do Estado do Vaticano e, em muito maior número, elogios rasgados a Verdi.
Hans von Bülow , maestro com certo prestígio e um dos trauliteiros de serviço, escreveu a crítica na véspera da estreia. Recusou-se a ir à estreia, preferindo uma ópera de Glinka (insucesso clamoroso) . Acusou a "Messa" de "inúmeras falhas, erros grosseiros de nível estudantil, ausência total de gosto". Dezoito anos depois, H. von Bülow pedirá desculpa a Verdi, dirá que, "na altura, estava num estado de total imbecilidade, de cegueira, provocada por um fanatismo ultra-wagneriano". Verdi divertiu-se bastante com a desculpa tão tardia, considerou que Bülow devia ser louco... e guardou a escusa num escaninho como uma pérola.
Porém, os elogios choviam em cima da obra de Verdi. Brahms, depois de ler a partitura da "Messa da Requiem", terá comentado: " Bülow desgraçou-se para sempre, só um génio podia escrever uma obra como esta." George Bernard Shaw escreveu: "Verdi permanecerá sempre entre os maiores compositores italianos (...) mas o "Requiem" a Manzoni permanecerá o seu monumento imorredouro (...), essa obra sozinha (...) colocá-lo-á seguramente entre os imortais."
A sequência "Dies Irae" ("Dias da Ira"), a mais longa da obra - 40 minutos -, na qual se concentra a fúria divina a abater-se com uma violência superior à de qualquer Requiem passado ou futuro.
"Dia da ira, Dia esse/que consumirá a terra e as cinzas/ segundo as profecias de David e de Sibila/(...) Livra-me, Senhor, da morte eterna,/nesse dia tremendo/em que os céus e a terra serão revolvidos,/ e Tu virás julgar o mundo pelo fogo."
A obstinação e a confiança genial de Giuseppe Verdi cravaram uma lança ainda viva no coração do sectarismo religioso que intenta ultrapassar os domínios do espiritual e sobrepor-se nos campos terrenos.
Vem a propósito fazer um paralelo entre a "Messa da Requiem" de Verdi e o "Requiem em ré menor" (estreado a 2.Jan.1793) do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, menino prodígio que aos 3 anos tocava cravo e piano, aos 5 começou a compor, aos 6 o pai levava-o em digressão pelas principais cidades europeias , juntamente com a irmã Nannerl, à qual Mozart permaneceu sempre ligado por fortes laços de afectividade e abundante (e irreverente) correspondência.
Mozart, influenciado por Michael Hayden, Mozart ligado à franco-maçonaria (então, uma força política secreta, progressista, de carácter "iluminista") compõe uma missa fúnebre - a sua última obra - também para 4 solistas (soprano, alto, tenor, baixo) e um Coro. Obra, portanto, nitidamente operática, mas assaz diferente da de Verdi. O menino prodígio de Salzburgo, (Áustria), menino "amado pelos deuses", que morre com 35 anos roído pelo absinto e pelas noitadas coladas às auroras, defende que "a Música, mesmo nas piores situações, nunca deve agredir os ouvidos, mas sim cativá-los e continuar sempre Música".
O que se traduz numa missa fúnebre que deixa aberta uma janela de esperança para um Futuro promissor, algures... Ao reverso do Requiem de Verdi que se abate tragicamente sobre todos os seres humanos.
Estamos agora em condições de compreender a magistral oração fúnebre concebida e executada pelo Partido Comunista Português (PCP) , num dos salões do Hotel Plaza, na Rua do Salitre, em Lisboa, logo a seguir ao Parque Mayer, no dia 10 de Maio.2016, a partir das 17horas.
Parque Mayer onde antes do 25 de Abril, com coristas espanholas rechunchudas a piscarem o olho para latifundiários alentejanos sentados na plateia com capotes de golas de pele raposa, com óptimos cenários no fundo do palco, uns textos cheios de trocadilhos, segundos sentidos e piadolas sempre a descair para a cueca, naipes de actores por vezes notáveis - por exemplo, Humberto Madeira, Ivone Silva, Vasco Santana, Costinha - muito Zé Povinho do distrito de Lisboa em sentido ampliado, em dia de aniversário ou festa familiar, fazia o baptismo possível contra a asfixia bafienta, de sacristia, do salazarismo.
Ía eu então teclando que o PCP, no salão referido, ofereceu uma missa de Requiem prognosticando o fim , mais perto que "loantano", da Europa do Euro, da Europa do Grande Capital.
Fim não só desejável como inevitável, pois já está em andamento com o esquartejamento a várias velocidades da economia e sociedade dos Países da União Europeia.
Solistas: o secretário-geral Jerónimo de Sousa, Vasco Cardoso, Paulo Santos, João Ferreira, a representar todo o Partido e os seus militantes, a Comissão Política, o CC e o Grupo Parlamentar, o Grupo Interveniente na Comissão Europeia. Solistas convidados: Jorge Bateira, professor universitário e investigador da área económica, e João Ferreira do Amaral, professor universitário e investigador da história da economia.
No salão umas duzentas pessoas. Pela Comunicação Social: a LUSA, a SIC, a RTP Antena 1 e os serviços de filmagem do próprio Partido Comunista Português.
Estavam assim reunidas as condições para um Requiem memorável, dinamizado pelo PCP, a favor do fim da União Europeia dos Patrões, dos Cartolas, e para o advento de novas alianças inter-países mais igualitárias, mais solidárias, realmente democráticas. E o Requiem aconteceu.
Jorge Bateira contribuiu com uma fórmula lapidar, afirmando que o fim desta UE do Grande Capital não é apenas uma exigência económica, mas uma questão de dignidade, de soberania nacional, pois a soberania não é como o fiambre que se pode cortar às fatias.
João Ferreira do Amaral confessou que embora o PCP tivesse desenhado já em 1998 o perfil funesto desta UE, só em 2004 tinha começado a compreender a verdade deste perfil desenhado e que, nos dias de hoje defende convictamente a saída o mais rápida possível do Euro e a cunhagem nacional da nossa própria moeda.
Jerónimo de Sousa colocou a cúpula no Requiem recordando que a saída do Euro, a cunhagem de moeda decidida a nível nacional, a recuperação da dignidade e da soberania nacional, precisa de ser assumida pelo grosso das camadas produtoras da população portuguesa e pela sua luta consciente nos vários "fora" da vida.
Os outros solistas mencionados, "da casa", que me desculpem, mas não tirei os apontamentos suficientes. De qualquer forma as suas intervenções importantes e esclarecedoras podem ser encontradas no "Avante!" e já as tenho encontrado citadas ou escortanhadas (o que é sempre um sinal de sucesso, embora indesejado) no "Facebook.
A primeira audição do Requiem profético do PCP foi dada. A luta em marcha acelera-se.
Amplexos amistosos, confiantes do
Leopardo
Vaticano
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